Introdução
O trabalho sob o qual me propus debruçar gira em torno da temática «A Imagem na Obra de João Botelho», a nível do Design Gráfico, Ilustração, Cinema. Porquê pegar nestas três vertentes artísticas, aparentemente, independentes e que utilizam linguagens distintas?
O pressuposto segundo o qual me orientei foi que todas as artes se entrecruzam e todos os imaginários se tocam. Pretendi averiguar de que forma isso se processa que é uma problemática que é importante para mim porque, através da obra consolidada de João Botelho, designer gráfico, ilustrador, realizador, poderia perceber o meu próprio percurso, idêntico ao autor estudado, e de que forma posso potenciá-lo.
Numa segunda fase de pesquisa, que culminou na apresentação de uma montagem realizada em Power Point, cheguei a algumas conclusões. Uma conclusão geral a que cheguei, foi que o processo criativo de João Botelho se estrutura a partir de um texto, passa ao desenho e daí para a imagem. Para tal, usei dois exemplos de filmes que gosto da sua autoria e de duas fases distintas, «Conversa Acabada» (1982) e Corte do Norte (2008), respectivamente a sua primeira e a sua última longa-metragem em forma de ficção, e quatro livros, três deles da minha infância - «O País das Pessoas de Pernas Para o Ar», «O Têpluquê» e «Gigões & Anantes». Procurei um mais recente, de 1999, «Histórias Que Me Contaste Tu» para ter consciência de ter havido ou não uma evolução na estética da linguagem de João Botelho.
Ora, na terceira parte, pretendi averiguar se as suposições que fiz são verdadeiras e se têm fundamento para poder elaborar uma conclusão consistente para o meu trabalho, ainda que para cada conclusão levantemos uma nova questão, tal como a que deixei pendente na minha apresentação da aula, «Real ou Imaginado», à qual segui «Ficção? Não-Ficção?».
Para tal, paralelamente ao continuar da minha investigação, e como estou mais próxima do mundo das imagens do que do das palavras pedi o contributo do escritor Manuel António Pina que trabalha directa e quase exclusivamente, com João Botelho que ilustra a maior parte dos seus livros. A ideia foi perceber a relação escritor, ilustrador, palavra, texto, desenho e imagem, desmistificar este processo de construção, a relação do texto, do indivíduo que o escreve, com a imagem, com o indivíduo que o compõe e ilustra, criando um novo universo. Coerente ou não com o primeiro?
Eu que tenho guardado no meu imaginário os livros que referi, não consigo imaginar uma coisa sem a outra. Quando lembro a história, lembro a imagem que tenho da mesma que é ela mesma uma reinterpretação daquilo que li, que vi, e do que não vi mas imaginei. Por exemplo, eu imaginava que era a menina da capa do livro «O Têpluquê» porque era parecida comigo e, logo, que era eu que vivia aquelas histórias. Quis saber qual a visão de Manuel António Pina perante estas questões que se me levantaram às quais respondeu, por e-mail, com toda a brevidade e predisposição, e consegui também alguma informação que resolveu algumas dúvidas que tinha relativas ao tema, através de uma pequena conversa telefónica que estabeleci com João Botelho.
O Processo Criativo de João Botelho
João Botelho experimentou também, durante a sua formação, diversas áreas aparentemente antagónicas. Frequentou a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, e a Escola de Cinema do Conservatório Nacional.
Tem trabalhado a imagem na área do Cinema, a nível da Realização e Crítica, desde 1977, da Ilustração e do Design Gráfico, desde 1970. Foi fundador da revista de cinema M e dirigente do CITAC - Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra , dos Cineclubes de Coimbra e Porto tendo sido professor na Escola Técnica de Matosinhos. Fez o design gráfico da revista K, por ele fundada em 1990 e na qual exerceu também a crítica cinematográfica. Esta revista foi entretanto extinta.
Os seus primeiros trabalhos na área do Cinema, todos no ano de 1977, foram duas curtas-metragens para a RTP, «O Alto do Cobre» e «Um Projecto de Educação Popular», o documentário «Os Bonecos de Santo Aleixo» para a Cooperativa Paz dos Reis, e, em 1978, a curta-metragem «Alexandre Rosa» que estreou na Semana dos Cahiers, em Paris. Em 1980, avançou com a sua primeira longa-metragem ficcional «Conversa Acabada». O último filme seu que estreou nas salas de Cinema foi «A Corte do Norte», em 2008. Também neste ano terá aceite uma Encomenda da Direcção Regional da Cultura do Norte, em vídeo digital que, intitulado «Para Que Este Mundo Não Acabe», se encontra actualmente a rodar em Montalegre, até 6 de Julho. Está ainda a desenvolver um filme, «O Filme do Desassossego», que parte de uma temática ligada à sua primeira obra de ficção, Fernando Pessoa, «Prometo-vos que voltarei ao risco, e a Fernando Pessoa. Em 2009 quero fazer o filme mais desassossegado que possam imaginar, a partir do Livro de Desassossego de Bernardo Soares/Fernando Pessoa»1
Como referi atrás, vou recorrer-me a exemplos fílmicos, «Conversa Acabada» (1982) e «Corte do Norte» (2008), e exemplos a nível da ilustração/design gráfico, a criação de um novo universo para além do texto que propõe um diálogo entre a tipografia e a imagem, «O País das Pessoas de Pernas Para o Ar» (1973), «Gigões & Anantes» (1974), «O Têpluquê» (1976) e «Histórias Que Me Contaste Tu» (1999).
«Conversa Acabada» é uma história do encontro entre duas personalidades da literatura portuguesa, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, frutos de uma profunda crise política e moral, de um local e de uma época, o início do século XX. Esse encontro processa-se através de textos (cartas, postais, poesia, prosa), cultiva-se uma grande amizade que acaba em morte.
«A Corte do Norte» é a história de uma mulher, Emília de Sousa, ou Rosalina de Sousa, ou a baronesa da Madalena do Mar, ou «a boal de cheiro», ou «a cabrita», ou mais importante que tudo isso, a grande actriz Emília de Sousa, a maior actriz que o teatro português conheceu nos finais do século XIX, que terá começado como prostituta num bordel onde declamava poemas de Almeida Garrett que a apadrinhou. Tornou-se num símbolo e num mistério, perpetuado por quatro gerações, que pairou entre a dualidade Emília/Rosalina e que perturbou, traçou os comportamentos, as misérias e as grandezas de todos os outros membros da família.
Os livros «O País das Pessoas de Pernas Para o Ar» (1973), «Gigões & Anantes» (1974), «O Têpluquê» (1976) e «Histórias Que Me Contaste Tu» (1999) são da autoria de Manuel António Pina, na categoria de literatura infanto-juvenil, ainda que contenha um subtexto apenas entendido por adultos. Conhecido pelo seu tom reflexivo, filosófico e irónico, o autor é considerado uma das mais eminentes figuras da literatura portuguesa contemporânea. João Botelho é o seu companheiro «consanguíneo», como refere Manuel António Pina,2 nesta aventura, ilustrando e criando imaginários paralelos a esta obra.
Vou falar nas características do autor porque um autor transparece algo de si mesmo nas suas obras, o seu imaginário, e cria uma identidade, seja qual ela for, que lhe pertence sem termos que ver obrigatoriamente nelas uma assinatura. Esse foi precisamente o meu ponto de partida. De que forma o imaginário de alguém se expande nas mais diversas áreas artísticas, e de que forma elas mesmas interagem umas com as outras e se contaminam. «Se as nossas circunstâncias são a nossa memória social, também o “nós” que somos é memória, memória biológica», diz Manuel António Pina3 .
João Botelho defende um Cinema de Autor que faz reflectir o espectador, criando uma atmosfera que faz pensar, em detrimento da representação de um espaço, e distante da forma de consumo directo do Cinema Comercial. Sentiu-se "rejeitado por artistas" porque se tinha atrevido a fazer um filme popular, «Corrupção», rodeado por diversas polémicas com o filme, o qual se recusou a assinar por divergências com o produtor, relativamente ao produto final. Contudo, este filme, em termos de conteúdo, está coerente com os pressupostos de João Botelho se virmos as coisas do prisma da vontade de representar uma realidade portuguesa, «O que é ser Português?»4, «A minha pátria é a língua portuguesa»5.
Do seu imaginário podemos retirar a relação com a pintura barroca de Caravaggio, o Romantismo de Delacroix, ou Klimt e a Art Nouveau, da qual retira o jogo de luz/sombra que utiliza e que toca também o Teatro, no dramatismo que advém dessa relação, quando retracta na «Corte do Norte», duas cenas baseadas em quadros dos dois primeiros pintores referidos. É este aspecto de ligação directa à pintura na utilização dos fundos em sombra, muitas vezes negros, que confere à sua obra uma ideia de bidimensionalidade, perfeitamente assumida em «Conversa Acabada», com as projecções que simulam cenários por trás das personagens, e pela utilização sucessiva do plano frontal coincidente com o Teatro, mais uma vez. Do Teatro provém também a importância dada à Cenografia e Guarda-Roupa que confere aos filmes a tonalidade desejada, com uma notória importância dada às cores, esverdeadas e esbatida em «Conversa Acabada» e vivas, criando atmosféricas que nos fazem distinguir as personagens em termos de tempo cronológico, em «Corte do Norte». Há sempre personagens trágicas ou ambíguas e recorre em ambos os filmes à incursão de voz off, de Maria João Cruz que se faz passar por Agustina em «A Corte do Norte» e de Jorge Silva Melo, como Fausto, uma personagem que também Manuel António Pina utiliza em «O País das Pessoas de Pernas para o Ar», assim como outros escritores, tal como Goethe. Em «Conversa Acabada» à voz de Fausto, em dada altura, é sobreposta uma voz feminina que lê um poema, provocando uma dialéctica interessante.
Resumi o processo criativo de João Botelho, relativamente aos diversos produtos criativos que constrói, segundo um percurso que parte do texto, dá origem a um desenho que dá forma a uma imagem.
O Texto
Dentro do texto, bifurquei o caminho em texto como imagem e em texto como pretexto. Podemos falar em texto como imagem quando o texto não é trabalhado enquanto signo que corresponde a um conceito, invés disso, o conjunto de caracteres é transformado num símbolo visual. O design gráfico vive desse estímulo, o visual, porque numa imagem, às vezes numa palavra, o caso dos logótipos, o designer tem que reflectir um conceito universal, para o nicho de pessoas a que é dirigido e que o deve perceber no imediato. Esta vertente artística está intimamente ligada a uma outra que a precedeu, a poesia visual, cujos historiadores que se dedicam ao estudo desta área datam o seu nascimento aquando «A Revolução Tipográfica» preconizada pelos Futuristas, no inicio do século XX.
A poesia visual resulta da intercepção entre a poesia e a experimentação visual, contudo pode ser vista como o resultado duma sobreposição entre a escrita e o desenho, uma vez que toda a escrita tem origem no desenho. A escrita pode ser entendida como um desenho de palavras. A poesia visual é uma forma de poesia experimental em que a imagem, o elemento plástico, em todas as suas facetas, técnicas e suportes, predomina sobre o resto dos componentes. É uma forma de poesia não verbal cujos criadores se movem na fronteira entre os vários géneros artísticos, a pintura, a música, o teatro, a acção poética, e a poesia. Exemplos que terão desenvolvido esta prática, em Portugal, terão surgido, originalmente, através dos futuristas com o descontentamento dos intelectuais face à imobilidade cultural e ao fenómeno político, potenciados pelas ideias que surgiam de Paris. Podemos referir o nome de Almada Negreiros com «Manifesto Anti-Dantas», «Orpheu Nº1» e «Portugal Futurista».
“O quadrante esquerdo sendo o da oralidade, conterá os valores sonoros, temporais, rítmicos que tenderão para a música. O quadrante direito, sendo o da visualidade, conterá os valores visuais e espaciais que tenderão para as artes plásticas (no sistema novecentista de classificação das belas-artes, ainda vulgarmente usado). A poesia visual corresponderá, portanto, a um investimento dos sinais de que se formam os poemas (letras, palavras, imagens) no quadrante direito, ou seja, em valores espaciais e visuais, em detrimento dos valores sonoros e temporais que predominam na poesia não-visual. No entanto, esta esquematização se tem valor pedagógico, é reducionista, já que a poesia visual não abdica dos valores temporais e sonoros, tal como a poesia convencionalmente escrita, que se joga no quadrante da oralidade, não abdica, também, dos valores visuais e espaciais e muitas vezes para eles apela, na sua função imagística.” 6
«O texto de um poema, romance ou biografia é um carácter num esquema notacional. Enquanto carácter fonético, tendo elocuções como conformantes, pertence a um sistema aproximadamente notacional»7.
João Botelho trabalha o texto dos livros estudados desta forma, mas cria um novo desafio, o diálogo entre a ilustração e o arranjo gráfico do texto. O texto não reflecte apenas o imaginário de Manuel António Pina, transpõe-no, acrescenta mais um universo às palavras que o compõem. O texto é imagem e a imagem funde-se no texto e interage com ele, criando um jogo de interacção entre a imagem-ilustração e a imagem-texto.
João Botelho esclareceu-me como a Paginação do livro é uma coisa distinta da Ilustração. Ele vê as páginas em branco como algo que tem que ser preenchido, assim como o Cinema. Nos primeiros livros, chegou mesmo a colar caracteres, letras, à mão, uma a uma.
Manuel António Pina, segundo a entrevista realizada por e-mail, fez-me saber que este processo de criação colectiva é completamente estanque. Pina faz o texto, Botelho faz a imagem, sem conversa prévia, sem interferência de um no trabalho do outro. Contudo, têm percursos e imaginários que se tocam e que fazem com que esta obra de arte de parceria tenha um diálogo texto/imagem coerente. Também Pina quando escreve as suas histórias, apesar de não se basear em imagens, é contagiado por imaginários de outras histórias, como «Winnie-the-Pooh», ou «Alice no País das Maravilhas», ou «O Capuchinho Vermelho» porque todos nós somos compostos por memórias que nos criam imaginários, e estabelecemos sempre diálogos connosco próprios, chamando as nossas vivências na interpretação e construção desses mesmos imaginários. Explica esse fenómeno dizendo «Não existe “o leitor”; existem leitores concretos, com memórias concretas; o próprio “leitor”, lendo, por exemplo, um texto pela segunda vez, é sempre já “outro”, pois a primeira leitura já o transformou. (…) Porque um livro é sempre muitos livros, é sempre um, como diz Blanchot, “livre à venir”» (Manuel António Pina – Ver entrevista em anexo).
Relativamente, ao segundo sentido dado ao texto, o texto como pretexto, o texto é também um pretexto nos seus filmes. Para «Conversa Acabada» consultou a correspondência entre Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, prosas e poemas dos mesmos, uma carta e postal de Carlos Ferreira a Fernando Pessoa sobre a Morte de Sá-Carneiro e livros sobre a vida e obra dos dois. Utilizou textos totais ou, por vezes, parciais no seu filme, por ordem de utilização. De Fernando Pessoa, «Primeiro Fausto», sobre a forma dos seus heterónimos, Álvaro de Campos, «Soneto já antigo», «Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação», «Epithalamium», «Hora Absurda», Alberto Caeiro, «Eu nunca guardei rebanhos…», «Ao entardecer, debruçado pela janela…», «Há metafísica bastante em não pensar em nada…», «O meu olhar azul como o céu…», «Chuva Oblíqua», Ricardo Reis, «Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio…», «Além-Deus», Álvaro de Campos «Ode Triunfal», Ricardo Reis «Melhor destino que o conhecer-se…», Álvaro de Campos, «Ode marítima», «Carta a Adolfo Casais Monteiro a 13 de Janeiro de 1935», «Antinous», «Crónica da vida que passa», «O Marinheiro», Alberto Caeiro, «A espantosa realidade das cousas…», Álvaro de Campos, «Passagens das Horas», «Mário de Sá Carneiro», e da Mensagem, «Nevoeiro».
Convocou, ainda, as Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, de Mário Sá-Carneiro, em «Dispersão», «Inter-sonho», «Álcool», «Dispersão», «A Confissão de Lúcio», em «Últimos Poemas», «Manucure», «Crise lamentável», «Aqueloutro», de «Cartas a Fernando Pessoa», «Feminina», e de «Indícios de Oiro», «Sete canções do declínio».
Referindo-se a esse filme e à forma como tratou o texto diz «Ouvir os textos é que é importante»8, e informa também que «Todo o filme foi construído a partir de uma ideia de base muito simples: o importante em Pessoa e Sá-Carneiro, por mais trágicas e espectaculares que sejam as suas vidas, reside nos seus textos»9. «São de tal modo fortes ou emotivos os textos, as cartas e os poemas, que foi deliberadamente procurada uma representação branca para os actores, sobretudo para os principais»10.
«Corte do Norte» é a adaptação de um romance da Agustina Bessa-Luís. «Muitos dos diálogos são transcrição dos de Agustina Bessa-Luís para a Corte do Norte. Outros, são construídos a partir do discurso indirecto de Agustina. Outros, ainda, são inventados para que a narrativa seja fluida no filme»11.
Neste filme de 2008 o texto não tem a mesma importância que o outro aqui referido do autor. É também encarado como um ponto de partida em termos de temática e de alguns diálogos, como foi referido por João Botelho, que diz mesmo ter seguido com rigor a história da autora. Mas há um acrescento à história, a voz de Maria João Cruz enquanto narradora, como se fosse a própria Agustina a contar a história. No romance de Agustina o que nos chama mais à atenção é o sentimento insular que se instaura no uso da saudade e retracta o trajecto moral de Rosalina de Sousa, baseada na história verídica da actriz Emília das Neves, senhora do Funchal e baronesa da Madalena do Mar, e a história de cinco gerações de mulheres que partem de si. O seu trabalho, resume João Botelho à revista Visão, «É um filme sobre a arte que está acima da vida, o abandono de todas as condições sociais para ser artista», acrescentando «O outro grande tema do filme é que as mulheres são geniais, fantásticas e grandes e os homens são débeis e tontos» 12. Para mim, o acrescento maior à história está patente na forma como trata a imagem e como transforma a actriz Ana Moreira em cinco personagens distintas. Foram esses aspectos que verdadeiramente me ficaram do filme e que trouxeram algo de moderno e enriquecedor à História do Cinema Português. Mas disso falarei mais adiante.
João Botelho explicou-me que a forma como trata o texto de onde parte para os seus filmes é sempre um ponto de vista. O texto é a matéria, a luz/sombra e os seres humanos entre as sombras é o que faz o filme. Em «Conversa Acabada» só acrescentou três linhas de texto para além dos recolhidos que pertencem a Pessoa e Sá-Carneiro. Em «Corte do Norte» acrescentou um narrador que será uma representação de Agustina a contar a sua história.
O Desenho
Desenhar é produzir uma imagem visual através da acção de um meio específico interagindo sobre uma superfície. Desenhar com uma qualquer finalidade útil, poderá desencadear o processo de desenho que, pode sugerir ideias divergentes da intenção original. Desse modo, o desenho pode tornar-se também uma expressão artística cujo sentido é o de ser obra com finalidade em si mesma. Podemos considerar os desenhos como objecto final, enquanto estudo ou projecto e enquanto disciplina artística.
«O esboço (…) não se apresenta, de maneira alguma, numa linguagem ou numa notação, mas antes num sistema sem diferenciação sintática nem semântica» 13.
No meu trabalho encarei o desenho como um esboço para a imagem, um meio para o fim que se pretende atingir, seja ele um conjunto de imagens em movimento ou um conjunto de imagens estáticas. Por outro lado, para mim, desenho é tudo o que envolve construção, seja pelo intermédio de referências exteriores ou provenientes de um universo interior. Assim, dividi desenho em três etapas: Preparação do Filme (Storyboard), que poderia englobar Estudo Para Uma Ilustração mas não tive acesso a esse material, ainda que saiba, à partida, que toda a imagem é preparada segundo estudos no sentido de se chegar à melhor forma de construir uma estrutura compositiva equilibrada e esteticamente agradável para a imagem final que daí irá resultar, Referências e Duas Linguagens, Uma Mesma Gramática. Quando me refiro a duas linguagens, falo da imagem estática (ilustração/mancha gráfica) e da imagem em movimento que não é mais do que uma soma de imagens estáticas. Cinema não é mais do que, como o sugere a palavra etimologicamente, «escrever movimento», ou seja ao escrever movimento pela captação de um conjunto de imagens (fotogramas), acaba por reger-se pelos mesmos princípios da imagem estática.
Um Storyboard tem como finalidade marcar as principais passagens da história que será contada num filme da forma mais próxima do aspecto final de projecção. Poder-se-á, assim, ter uma percepção das nuances de sequência, ritmo das cenas e da sua interligação, do clima e da eficácia ou ineficácia em transmitir a história. A semelhança com a Banda Desenhada é motivada pelo método utilizado para contar uma história. O Storyboard também conta uma história através de uma sequência de quadros, e a BD, tal como o Cinema, utiliza recursos para transmitir uma noção de espacialidade, como composição do plano (ou do quadro no caso da Banda Desenhada), enquadramento e estudo de luz/sombra. Não será por acaso que outra definição de desenho é «Reprodução de objectos por meio de linhas e sombras» 14. A imagem num Storyboard precisa de transmitir uma impressão mais fiel de uma imagem real sem, no entanto, determinar muitos detalhes. A função do Storyboard é transmitir a sequência e o clima de uma cena.
João Botelho esclareceu-me que só desenhou o seu storyboard para os três primeiros filmes, nomeadamente «Conversa Acabada». Agora já não os faz, mas diz que o Curso de Engenharia que frequentou fez com que fosse uma pessoa mais organizada, «Faço e gosto de mostrar como faço». No Cinema isso é muito importante porque no fundo o Cinema é a forma como se filma e como se coloca a câmara.
«Um guião, ao contrário de um esboço, é um carácter num esquema notacional e numa linguagem (…) Apesar de a maior parte dos guiões serem verbais, a notacionalidade não depende obviamente do aspecto das marcas» 15.
João Botelho, como já referi quando enumerei as suas características enquanto autor, tem referências directas em «A Corte do Norte» a pinturas de diferentes períodos artísticos. Temos uma imagem que aparece em momentos chave do filme que é o quadro de Caravaggio, «Judite e Holofernes», correspondentes ao período Barroco, e que se converte em peça de Teatro na parte final do filme. Em termos de texto (em forma de narração) e imagem, temos a obra do período Romântico «Liberdade Guiando o Povo», de Delacroix, «A rapariga tem talento e, de barrete frígido na cabeça e peitos descobertos como a jovem República Francesa»16, e «O Beijo» de Klimt, obra situada no período da Arte Nouveau, «Apaixonou-se e foi viver com Olímpia, que tinha o rosto saído de um quadro de Klimt»17.
Duas Linguagens, Uma Mesma Gramática. Um criador produz sempre segundo um mesmo esquema de pensamento mas mesmo assim fui surpreendida pela grande proximidade e semelhança relativamente a frames do filme «Conversa Acabada» e «Corte do Norte» com ilustrações dos livros, «O País das Pessoas de Pernas Para o Ar», «O Têpluquê» e «Gigões & Anantes» e «Histórias Que Me Contaste Tu». Apesar de as imagens utilizarem técnicas diferentes, têm um universo idêntico pelos seguintes atributos: composição, temática, jogo de luz/sombra, cenário e, por vezes, através de um mesmo tratamento da cor, dos tons. O mais curioso é que, relativamente ao caso de Conversa Acabada, o filme dista dezassete anos de «Histórias Que Me Contaste Tu» e têm, um, uma ilustração, outro, um plano, completamente idênticos. Assim como «Corte do Norte», que dista temporalmente mais de vinte cinco anos dos três livros de ilustração que referi como mais antigos e tem também imagens com o mesmo grau de semelhança com os livros.
Fica aqui uma dúvida. O autor tem o seu imaginário tão coerente e imutável ao longo do tempo ou pegará em imagens estáticas e converte-las-à em imagens em movimento, e pegará em imagens em movimento e congela-las-à, embebendo-as nos livros de Manuel António Pina? Não cheguei a conseguir esclarecê-la com o Botelho ainda.
Pois como me disse este escritor, «As linguagens estéticas são, ao mesmo tempo, expressão e agentes dessa mudança, mas encontram-se, por assim dizer, na sua circunferência, de tal modo que mudanças imperceptíveis no centro (ou próximo dele) se tornam aí naturalmente mais óbvias e visíveis» 18.
A Imagem
A imagem foi encarada por mim como um fim a atingir, o final do processo. Poderá ser um livro enquanto todo, capa, lombada, contracapa e miolo com todas a ilustrações, palavras compostas em forma de mancha gráfica, ou um filme que à semelhança de um livro, que poderá ser também de Banda Desenhada segundo o entendimento de Botelho, «Um filme [Conversa Acabada], como uma banda desenhada, sem profundidade, à superfície, como se os actores fossem marionetas portadoras de texto» 19.
O termo «Imagem» significa a representação visual de um objecto. Platão considerava a ideia da coisa a sua imagem, como sendo uma projecção da mente. Inversamente, Aristóteles considerava a imagem como fruto de aquisição pelos sentidos, a representação mental de um objecto /objecto real. Em termos artísticos, imagem é qualquer forma visual que expresse uma ideia e pressupõe um conteúdo, uma forma, um contexto histórico-social de produção, um autor e um público que compreenda o sentido das imagens. Apesar de o termo «Imagem» ser, nos nossos dias, mais associado aos meios audiovisuais, imagem é toda a visualização construída pela acção do Homem, incluindo todo e qualquer objecto que seja percebido visualmente e, por isso, esteticamente.
Há vários tipos de imagens, visuais, auditivas, tácteis, olfactivas, que partem sempre de uma sensação acompanhada de ideias, a «imagem mental». A imagem é multiforme, pode ser produzida por um fenómeno natural, reflexo, sombra, visão através de um corpo transparente, ou por um gesto humano. A imagem cinematográfica é plana, enquadrada, o que a aparenta à pintura e à fotografia, e por este motivo, tal como estas duas vertentes artísticas, é percepcionada, em simultâneo, como bidimensional e como tridimensional. A imagem pode apresentar-se sobre a forma de signo, reduz-se tanto mais a um signo, quanto menos representar, como representação, quando figura coisas concretas, ou como símbolo, quando figura coisas abstractas.
Pluralidades / Dualidades
Por pluralidade podemos entender «multiplicidade; carácter de uma palavra que está no plural»20 e por dualidade «carácter ou propriedade do que é duplo»21, ora o que pretendo explorar neste subcapítulo referente ao capítulo «O Processo Criativo de João Botelho» é a pluralidade de linguagens e a dualidade dos sentidos.
Neste capítulo insiro a relação entre João Botelho e Manuel António Pina, o Indivíduo Plural presente na obra de João Botelho que é, sem dúvida, influenciado pelo seu fascínio por Fernando Pessoa, e algumas respostas à problemática «Real ou Imaginado?» que dá origem a uma outra «Ficção? Não-Ficção?».
M. A. Pina retracta a relação de criação que tem com Botelho como fruto de um universo que têm em comum e que os faz identificarem-se um com a linguagem do outro, sem terem necessariamente que falar sobre isso. «Como resulta do que antes ficou dito, isso importa-me, embora ache que texto e ilustração são universos, domo diz, “independentes” (não me recordo de ter alguma vez interferido no trabalho de um ilustrador; “reconheço-o”, ou “reconheço-me” nele, ou, talvez melhor, sinto que o meu texto o “reconhece” e se “reconhece” nele, ou não; mais nada). O que acontece é que esse “reconhecimento” é mais fácil quando, como também já disse, existe um património de afectos e memórias comuns, isto é, de imaginários comuns, entre autor do texto e autor da ilustração. Não tem necessariamente que existir, como no meu caso e de João Botelho, uma antiga relação de amizade; o “reconhecimento” é algo mais profundo»22.
M.A. Pina faz uma trilogia de três histórias sobre um escaravelho chamado Bocage, ao que João Botelho responde com três linguagens distintas a um mesmo universo literário. «Um escaravelho da Batata chamado Bocage queria atravessar a rua para ir ao outro lado pôr uma carta no correio» [Conversa com um escaravelho; Livro Gigões e Anantes; 1977; 2ªedição]. «Um dia, o escaravelho contador de Histórias chamado bocage, regressou» [O Regresso do Escaravelho Contador de Histórias; Livro O Têpluquê; 1976]. «Um dia, quando menos se esperava (pelo menos eu não esperava!), o escaravelho contador de histórias regressou de não-se-sabe-onde, que é o sítio de onde ele sempre regressa» [Histórias do Escaravelho Contador de Histórias; Livro Histórias Que Me Contaste Tu; 2003].
Este dado suscitou-me alguma curiosidade, facto que referi na apresentação deste trabalho durante a aula. Ao ser questionado, M. A. Pina respondeu-me que «De facto, as ilustrações dessas histórias têm linguagens estéticas diferentes. Mas não têm também os sucessivos textos linguagens diferentes? Eu mudei, o João Botelho mudou, e provavelmente mudámos de modo diferente, o João Botelho de acordo com a sua experiência ao longo de todos estes anos – diferente da minha –, eu de acordo com a minha. Mas tenho estado a falar de identidade (daquilo que “anima” as linguagens estéticas, da sua por assim dizer “alma”), e a identidade é algo que muda devagar, imperceptivelmente. Isso não significa que esteja parada, mas que muda lentamente. As linguagens estéticas são, ao mesmo tempo, expressão e agentes dessa mudança, mas encontram-se, por assim dizer, na sua circunferência, de tal modo que mudanças imperceptíveis no centro (ou próximo dele) se tornam aí naturalmente mais óbvias e visíveis»23.
João Botelho justifica que com o tempo foi depurando a imagem, foi acrescentando mais espaços brancos. «É preciso mudar e os escaravelhos voam um bocadinho. Não voam muito mas voam um bocadinho». Por outro lado, diz que desenha mal mas sabe como se desenha bem e quando o faz só pensa no lápis e no papel.
Quanto ao aparecimento de indivíduos plurais é um aspecto que acabei por desenvolver muito superficialmente com João Botelho mas penso que é uma característica visível na sua obra. Ele mesmo tem uma personalidade múltipla, em termos artísticos, é ilustrador, realizador, designer gráfico, crítico de Cinema. Utiliza personagens que têm esta mesma dualidade. Rosalina de Sousa ou Emília de Sousa, que criou um mistério em torno dessa dualidade, e no mesmo filme, Corte do Norte, utiliza uma mesma actriz, Ana Moreira, para cinco papéis, Sissi, Rosalina, Emília de Sousa, Águeda e Rosamund. Relativamente a este assunto também, o realizador explica que de uma actriz feia e atarracada, Emília das Neves, que existiu de facto, Agustina reinventou a actriz, semelhante à pessoa mais bonita do mundo, a bela Sissi. Ele pegou nesta característica e criou quatro ou cinco gerações de mulheres, em que o importante é retractar o seu conjunto de comportamentos.
Também em «Conversa Acabada» pega em duas personalidades em que a definição ou indefinição do eu, enquanto indivíduo, paira num mistério. São eles Fernando Pessoa e o seu conjunto de heterónimos, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Bernardo Soares, «Sê Plural como o universo!» e o seu antípoda Mário de Sá-Carneiro, «Eu não sou eu, nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio».
Real ou Imaginado? Real é algo «que existe de facto; verdadeiro, efectivo»24, aquilo que existe por si mesmo e que è, ao mesmo tempo, relativo às coisas, imaginado diz respeito à ideia, «uma representação do espírito»25. Realidade corresponde à experiência vivida que o sujeito faz desse real; pertence total mente ao domínio do imaginário. No Cinema assim como em qualquer área de expressão artística, faz sentido falar de «impressão de realidade» e não impressão do real porque um filme é o resultado da experiência do real que o sujeito transporta consigo e que o faz criar uma nova realidade, resultante da sua. Como diz M.A. Pina « Eu sou, pois, também todos os livros que li, todas as memórias alheias que partilhei, todos os seres que amo ou amei. (…) Ora, falando de mim, falarei sempre, necessariamente, de outros, dos livros, das pessoas e sei lá de que mais, que eu sou»26.
«Ficção é uma forma de discurso que faz referência a personagens ou acções que só existem na imaginação do autor e, depois, na do leitor/espectador»27. A ficção não é uma mentira, é um simulacro da realidade que o espectador/leitor entende enquanto tal.
«Só pelo feiticismo, pela cegueira da obra de arte frente à realidade de que ela própria é parte, é que a obra transcende o sortilégio do princípio de realidade como elemento espirítual»28.
Conclusão
O termo Estética, encarada nos primórdios como «a ciência dos sentimentos» ou a «ciência do belo», é utilizado também nos dias hoje, sob a forma de plural, para designar várias concepções do belo e da arte.
Nelson Goodman propõe uma abordagem que explora três sintomas do estético, a densidade sintáctica, a densidade semântica e a plenitude sintáctica. O primeiro diz respeito aos sistemas não linguísticos, distingue esboços de partituras e guiões, o segundo é típico da representação, descrição e expressão nas artes, e distingue esboços e guiões de partituras, e o terceiro distingue os sistemas mais representacionais dos mais diagramáticos. O quarto que propõe, distingue os sistemas exemplificativos dos denotativos, e que se combina com a densidade para distinguir o mostrar do dizer.
Este autor diz também «Não importa se o que se representa é um homem real; tudo o que está em questão neste caso é o modo como as diferentes imagens se classificam em caracteres, dos quais as imagens são marcas (…) Alguns autores defenderam que o símbolo linguístico (ou “discursivo”) difere de um símbolo representacional (ou “presentacional”) porque uma descrição é univocamente uma redutível a partículas como palavras ou letras, ao passo que uma imagem é um todo indivisível. Na verdade, um carácter atómico, como uma palavra com uma só letra, é mesmo assim uma descrição, ao passo que uma imagem composta, como um retracto de grupo, é ainda uma representação»29.
Adorno acrescenta «Nada existe de artisticamente verdadeiro cuja verdade se não legitime de um modo amplo; nenhuma obra há de consciência autêntica que em si não se afirme em função da qualidade estética»30, «Se a estética deve nuclearmente tratar da forma, adquire um conteúdo ao tornar as formas eloquentes»31. Também a estética vive desta dualidade, forma (imagem, enquanto símbolo representacional), conteúdo (desenho, enquanto esquema de pensamento, e texto, enquanto símbolo linguístico).
Notas
1 João Botelho: Conversa Acabada: Página 15
2 Manuel António Pina: Entrevista em anexo
3 Manuel António Pina: Entrevista em anexo
4 João Botelho; Conversa Acabada; Pág 11
5 João Botelho; Conversa Acabada; Pág 15
6 E. M. Melo e Castro, Poética dos meios e arte high-tech, Ed. Vega, Lisboa:1988, p.14
7 Nelson Goodman; Linguagens da Arte – Uma abordagem a uma teoria dos símbolos; Pág 225
8 João Botelho; Conversa Acabada; Pág 8
9 João Botelho; Conversa Acabada; Pág 7
10 João Botelho; Conversa Acabada; Pág 8
11 João Botelho; Corte do Norte; Pág 24
12 João Botelho; Visão; 12 de Março de 2009
13 Nelson Goodman; Linguagens da Arte – Uma abordagem a uma teoria dos símbolos; Pág 211
14 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
15 Nelson Goodman; Linguagens da Arte – Uma abordagem a uma teoria dos símbolos; Pág 217
16 João Botelho; Corte do Norte; Pág 9
17 João Botelho; Corte do Norte; Pág 20
18 Ver entrevista em anexo
19 João Botelho; Conversa Acabada; Pág 10
20 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
21 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
22 Ver entrevista em anexo
23 Ver entrevista em anexo
24 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
25 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
26 Ver entrevista em anexo
27 Jaques Aumont; Michel Marie; Dicionário Teórico e Crítico do Cinema; Pág. 108
28 Theodor W. Adorno; Experiência e Criação Artística; Pág. 134
29 Nelson Goodman; Linguagens da Arte – Uma abordagem a uma teoria dos símbolos; Pág 244
30 Theodor W. Adorno; Experiência e Criação Artística; Pág. 146
31 Theodor W. Adorno; Experiência e Criação Artística; Pág. 58
Entrevista com Manuel António Pina
1) Como é o seu processo de criação? Parte de imagens para criar o texto, a
história propriamente dita?
Raramente parto de imagens; parto, sim, de ideias (vagas…) e, sobretudo, de palavras e da sua dinâmica própria. Às vezes, como acontece no processo poético (Valéry disse que o primeiro verso nos é dado, e os outros têm que ser conquistados), parto de uma frase e, depois, deixo as palavras “escreverem-se” a si mesmas, conduzindo-me a mim mais do que eu próprio as conduzo. Como faz um pastor, apenas as vou distantemente orientando, tentando fixar-lhes, caso a caso, balizas e fronteiras (no entanto s móveis e incertas), deixando-as agir, como dizer?, em “liberdade condicional”. Quase sempre – quando escrevo, por exemplo, uma história – começo a escrever sem saber como a história irá terminar nem o caminho que irá seguir; e vou descobrindo isso à medida que escrevo, aceitando ou não as “sugestões” das próprias palavras. Que me lembre, só uma vez “parti” de imagens para escrever. Foi uma encomenda do Museu de Serralves: escrever um conto “a partir” de um conjunto de pinturas de Paula Rego sobre o Capuchinho Vermelho (“História do Capuchinho Vermelho contada a crianças e nem por isso por Manuel António Pina a partir de pinturas de Paula Rego”, Museu de Arte Contemporânea de Serralves/Jornal “Público”, 2005). Mas, mesmo então, as pinturas funcionaram apenas como “balizas” (um pouco menos instáveis que habitualmente mas, de qualquer modo, meras balizas; isto é, não me limitei – porque de uma limitação se trataria, que feriria de morte o trabalho de escrita – a “ilustrar”, ou repetir, as imagens com palavras, numa espécie de processo inverso ao processo mais comum, o das imagens serem “geradas” pelo texto).
2) E quando contacta com João Botelho? Quando todo o processo de escrita
está terminado?
Sim. Acho que sempre lhe entreguei o texto já terminado. E “entregar” é o termo, pois o deixo inteiramente à sua disposição.
3) Trabalha com João Botelho na maioria dos seus livros. Porquê? Acha que
os dois imaginários, o das palavras de um e o das imagens (texto visual e
ilustrações) de outro, são coincidentes?
Conheço o João Botelho há mais de 40 anos. Somos amigos desde então. A amizade funda-se num património de experiências, sentimentos, pontos de vista, isto é, memórias (ou, como diz, imaginários) comuns. Ao mesmo tempo, a própria amizade vai criando e aprofundando esse património. Já o disse uma vez numa entrevista: gosto normalmente de tudo o que o João Botelho faz, mesmo antes de vê-lo feito, o que é o mesmo que dizer que me identifico com ele. Porque é de identidade que, de facto, se trata. Uma identidade que, fundada exactamente numa memória comum, ou naquilo que, nas memórias individuais de cada um de nós, é comum. Estamos condenados a identificarmo-nos com aquilo que se nos assemelha, não é? Dou-lhe um exemplo: estou a acabar de escrever um livro de contos de Natal para a Porto Editora e aceitei – senti que seria um risco, mas são as regras do jogo da colecção – que a ilustração fosse entregue a alguém que não escolhi, cuja obra não conheço, e que nem sequer conheço pessoalmente, isto é, com alguém com quem, provavelmente, não tenho nada em comum. E estou, por tudo isso, com medo do resultado. Tal não tem a ver com a eventual qualidade, o que quer que isso queira dizer, que irão ou não ter as ilustrações, mas com o receio de que não sejam idênticas ao texto, que possa não haver uma relação de amor recíproco entre texto e imagem. Aconteceu-me o mesmo, e ainda a título de exemplo, com as ilustrações de Evelina Oliveira para o meu livro “O Tesouro”, (a 21ª edição e seguintes, da Campo das Letras). Foi igualmente um casamento “combinado”, e não um casamento de amor. Pode acontecer que um casamento combinado acabe em amor; mas, a maior parte das vezes, acaba divórcio. Ou, pior, em infelicidade a dois.
4)Terá havido alguma situação em que não reviu o imaginário que criou na
sua história com o que Botelho criou em resposta àquilo que interpretou,
ou isso nem sequer lhe importa porque encara os dois universos como
universos independentes um do outro? Cada um tem a sua tarefa.
Como resulta do que antes ficou dito, isso importa-me, embora ache que texto e ilustração são universos, domo diz, “independentes” (não me recordo de ter alguma vez interferido no trabalho de um ilustrador; “reconheço-o”, ou “reconheço-me” nele, ou, talvez melhor, sinto que o meu texto o “reconhece” e se “reconhece” nele, ou não; mais nada). O que acontece é que esse “reconhecimento” é mais fácil quando, como também já disse, existe um património de afectos e memórias comuns, isto é, de imaginários comuns, entre autor do texto e autor da ilustração. Não tem necessariamente que existir, como no meu caso e de João Botelho, uma antiga relação de amizade; o “reconhecimento” é algo mais profundo. Conheço, por exemplo, pessoalmente a Ilda David’ há apenas meia dúzia de anos, mas sinto o seu trabalho como sendo-me inteiramente consanguíneo, tanto ou mais do que o do João Botelho; e há pintores e/ou ilustradores, vivos e mortos, que, do mesmo modo, sinto serem da minha família, mesmo sem nunca os ter conhecido. Como, por outro lado, há pintores e/ou ilustradores que conheço há dezenas de anos, e de quem sou amigo, mas em relação a cujo trabalho não experimento qualquer sensação de identidade.
5) No caso da série de histórias «Conversa Com Um Escaravelho» (Gigões e
Anantes; 1974), «O Regresso do Escaravelho Contador de Histórias» (O
Têpluquê; 1976) e «Histórias do Escaravelho Contador de Histórias»
(Histórias Que Me Contaste Tu, 1999) as histórias interligam-se, são a
continuação umas das outras, mas as ilustrações, esteticamente, têm
linguagens e imaginários diferentes. Que pensa disso?
Nada. Para dizer a verdade, nunca tinha pensado nisso. De facto, as ilustrações dessas histórias têm linguagens estéticas diferentes. Mas não têm também os sucessivos textos linguagens diferentes? Eu mudei, o João Botelho mudou, e provavelmente mudámos de modo diferente, o João Botelho de acordo com a sua experiência ao longo de todos estes anos – diferente da minha --, eu de acordo com a minha. Mas tenho estado a falar de identidade (daquilo que “anima” as linguagens estéticas, da sua por assim dizer “alma”), e a identidade é algo que muda devagar, imperceptivelmente. Isso não significa que esteja parada, mas que muda lentamente. As linguagens estéticas são, ao mesmo tempo, expressão e agentes dessa mudança, mas encontram-se, por assim dizer, na sua circunferência, de tal modo que mudanças imperceptíveis no centro (ou próximo dele) se tornam aí naturalmente mais óbvias e visíveis.
6) Já agora, uma curiosidade. As suas personagens têm nomes que nos remetem
para outras histórias, Fausto (tem sido usado como base de diversos
romances de ficção, como o de Goethe), Sara e Ana que são as suas filhas,
Bocage, Noé, Alice, menino Jesus e S. José, Lázaro, etc. Vai, então
«roubar» o imaginário de outros indivíduos e reinterpretá-los como faz
João Botelho com as suas histórias?
Uma vez (refiro muitas vezes esta história), numa entrevista, perguntaram a Borges quem “era Borges”. Ele respondeu: Borges não existe; eu sou todos os livros que li, todos os lugares que visitei, todas as pessoas que amei. Isto é, como na frase tantas vezes repetida de Ortega Y Gasset, somos nós e as nossas circunstâncias, a nossa memória. Só que, se as nossas circunstâncias são a nossa memória social, também o “nós” que somos é memória, memória biológica (o que é o ADN se não memória?). Eu sou, pois, também todos os livros que li, todas as memórias alheias que partilhei, todos os seres que amo ou amei. Esses nomes não contêm, provavelmente, uma alusão concreta a algumas das memórias concretas de que sou feito, que eu sou. Mas o certo é que falamos permanentemente de nós, e que, mesmo quando falamos de outra coisa, falamos dela a partir de nós. Ora, falando de mim, falarei sempre, necessariamente, de outros, dos livros, das pessoas e sei lá de que mais, que eu sou. Já o escrevi uma vez num poema do meu livro “Os Livros”: “A literatura é uma arte escura/ de ladrões que roubam a ladrões”. “Roubar” (é o termo correcto) não é o mesmo que “copiar”; “roubar” é, como se diz em Direito, fazer de algo “coisa sua”. Assim como, na digestão, fazemos “coisa nossa”, sangue nosso, aquilo que comemos; se como uma maçã, a maçã, digerida, “está” no meu sangue, mas já não é ela, é eu…
7) É por isso que dizem que os seus livros «piscam o olho ao público
adulto». Porque eu em criança nunca poderia perceber o subtexto dos seus
textos que são extremamente complexos, vão buscar outros imaginários
resultando em forma de crítica política «Ordem Alfabética», vão buscar a
«Alice no País das Maravilhas» («O Regresso do Escaravelho Contador de
Histórias») e «O Capuchinho Vermelho»(«A Floresta das adivinhas»), por
exemplo.
É verdade. E também a “Winnie-the-Pooh” e a muitos outros livros. Um texto literário, como uma imagem, é sempre uma obra aberta. Escrever é ler, ou ler-se, por escrito. Do mesmo modo que quem lê, se lê a si mesmo no que lê, com a sua experiência, a sua cultura, a sua memória. O leitor (é também Borges quem o diz) é um cisne muito mais tenebroso que o autor. Porque não existe “o leitor”; existem leitores concretos, com memórias concretas; o próprio “leitor”, lendo, por exemplo, um texto pela segunda vez, é sempre já “outro”, pois a primeira leitura já o transformou. Talvez uma criança, a memória concreta que uma criança concreta é, possa não se aperceber dessas, como diz, “piscadelas de olho” (como também muitos adultos não se aperceberão); mas, lendo-se a si mesmo no que lê, apercebe-se certamente de coisas que um adulto, ou outra criança concreta, não se aperceberá. Porque um livro é sempre muitos livros, é sempre um, como diz Blanchot, “livre à venir”.
8) Por sua vez, essas referências já têm um subtexto. Esse subtexto, que
nem sempre é muito directo, é discutido com João Botelho antes de ilustrar
e fazer o arranjo gráfico do texto?
Não. É natural que o João Botelho se aperceba dele (que diabo!, lemos decerto os mesmos livros, ou muitos deles). Mas ele é, enquanto ilustrador, um “leitor” do que escrevo. Aliás, eu próprio, depois de ter escrito, sou um leitor (embora bissexto) do que escrevo. Nunca discuti um texto com ele, antes de ele o ter ilustrado ou de ele o ter tratado graficamente.
9) E quando faz essas referências a personagens ou narrativas de outros
autores, o seu imaginário parte da história, das ilustrações que recorda
ou sente que é de ambas as coisas?
Não, nunca “parto” de outras histórias concretas (salvo talvez, como antes disse, no caso da “História do Capuchinho Vermelho…”). O que acontece é que, no decurso da escrita – e o trabalho de escrita é sempre, também, uma trabalho de memória – a memória de outras histórias, ou de outras personagens, ou de gente ou circunstâncias concretas da minha experiência pessoal, “irrompem” naquilo que estou a escrever. A mim só me cabe aceitar essa irrupção ou não, deixar ou não as minhas palavras dialogar com ela, na convicção de que, de uma forma ou de outra, mais expressa ou mais impressivamente, tal diálogo é sempre inevitável. Porque é, essencialmente, diálogo comigo mesmo.
Bibliografia
Documentos Online
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Livros
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FERREIRA, CAROLIN OVEROFF (coord.) - O Cinema Português Através dos Seus Filmes. 1ª Edição, Porto: Campo das Letras, 2007, ISBN 978-989-625-182-6.
GOODMAN, NELSON – Linguagens da Arte – Uma Abordagem a uma teoria dos símbolos . Colecção Filosofia Aberta, Nº17. 1ª Edição, Lisboa: Gradiva Publicações, 2006, ISBN 989-616-108-9.
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BOTELHO, JOÃO – A Corte do Norte – Sinopse e Diálogos do Filme. 1ª Edição, Lisboa: Guimarães Editores, SA, 2009, ISBN 978-972-665-543-5
BOTELHO, JOÃO – Conversa Acabada – Sobre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Lusomundo Audiovisuais, SA., 2008.
Revistas
· RIBEIRO, ANABELA MOTA –Toda a Verdade Sobre Os Gatos, O Cão, O Pooh e o Pina. Pública. Lisboa, 26 de Abril de 2009, Páginas 10 - 20.
Filmografia
BOTELHO, JOÃO. Conversa Acabada. 1982
BOTELHO, JOÃO. Corte do Norte. 2008
Bibliografia Infanto-Juvenil
PINA, MANUEL ANTÓNIO – O País das Pessoas de Pernas para o Ar. Colecção Lobo Bom, Nº1. 3ª Edição, Lisboa: A Regra do Jogo, Edições, 1978.
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