Sentado no banco do jardim, «António, o Pintor», como o conhecem as pessoas das redondezas, de pincel na mão vai medindo a distância entre fogaréus, santos, cornijas e balaustradas, reproduzindo, talvez, os mesmos movimentos que, outrora, também Nasoni terá feito quando idealizava este monumento e o inseria no espaço envolvente.
A gente que se acumula ao vê-lo fazer estes gestos em jeitos de mágico, captando a alma das coisas que o seu olhar dita e a mão reconstrói, mesmo nada sabendo do arquitecto, pintor e decorador toscano, de gosto «barroco-rocócó», vê o edifício, edificado em 1763, a ser reconstruído em papel. Ainda que a Torre dos Clérigos tenha sido edificada por labor de tantas mãos em sintonia, um conjunto de gestos harmónicos, sincopados, desenvolvidos pela relação entre o maestro e a sua orquestra, e tenha demorado nove anos a tomar forma, António reconstrói esse processo. Mede, enquadra-a no espaço com traços gerais e começa a imaginar, partindo da planta elíptica da igreja, os espaços que tão bem conhece desde criança, a igreja com uma galeria que percorre a nave e a conduz até à capela-mor, inovação arquitectónica inserida pela primeira vez nas igrejas do norte do país, a enfermaria, a secretaria e a torre de 76 metros de altura e 6 andares que é a mais alta de Portugal. Pousa o pincel e a paleta.
São 13h. O sol reflecte nos seus óculos pequeninos que insiste em manter na ponta do nariz para conseguir dois olhares de um mesmo objecto. António tem uma deformação no olho esquerdo que os entendidos denominam de Hipermetropia, o povo generaliza dizendo «Coitado do Homem, é míope, é vesgo de uma vista», colmatando com a célebre frase «É assim a vida», mas, na prática, esta deformação, ou se quisermos, especialidade do olhar, caracteriza-se por um erro de focalização da imagem no olho porque o olho do hipermétrope é um pouco menor do que o normal. Contudo, tem boa visão ao longe. «É a vida!», sim, a vida traz-nos destas coisas, nascemos com ferramentas para vermos o mundo de formas diferentes, coisa que não conseguíamos por processo de massificação à nascença. Há algures também um pintor que nos reproduz com todo o empenho para que nunca saia um olho igual ao outro.
Ouve-se um acordeonista ao longe. Talvez, também ele veja a torre de outra forma, ou não veja, a sinta pelo recorte que a luz do início da tarde produz contra a sua face rosada pelo calor.
É com este fundo sonoro que o pintor tira o casaco, sem nunca se separar da boina bege, desbotada pelo sol. Trauteia uma qualquer canção, «A Senhora veio de Roma e em Lisboa foi c'roada. Em Braga foi padroeira e no Sameiro c'locada», enquanto ao compasso da música, ou assim me parece, vai tirando elementos que sugerem que vai almoçar, um pão «molete», uma garrafa de vinho tinto, e um taparuer com aquilo que parece arroz de frango. Para não invadir esse momento, assim como as outras pessoas que o observavam, preparo-me para ir embora mas ele sorri e diz-me «A minha avó era oriunda de Braga e mudou-se para cá ainda eu não era nascido. Costumava cantar esta cantilena que trouxe de lá e tinha uma voz celestial. Uma das coisas que me recordo dela é de ir à missa na Igreja dos Clérigos e de a ouvir cantar com agrado e à-vontade todos os cânticos ao longo do acontecimento. Conjuntamente com o som afunilado e solene produzido pelo órgão, a luz matinal, simétrica e intensa, proveniente da abóbada e das janelas laterais e que se reflecte na talha dourada e nos frescos das Passagens da Vida de Cristo, davam-me a sensação de um universo que contrapunha ao mundo profano, um universo divino e de paz». Aproveito a deixa para saber mais sobre aquele pintor.
Fala-me da igreja e da torre. Conta-me que do topo da torre se pode ver toda a cidade, numa panorâmica contínua propiciada pela sua planta circular, fala-me da sua paixão pela cidade e o prazer de a representar, confessa-me como o Porto é bonito para ele quando a luz reflecte no rio, a mesma luz que entra na igreja. E eu confesso-lhe que nunca subi à torre.
No momento seguinte, subimos à torre.
Como a parte antiga da cidade, a torre é de granito e dá-me uma sensação de conforto e familiaridade. À medida que subimos, sinto-me levitar pela cidade, uma e outra abertura, outra e mais outra janela. Sinto-me subir e vejo bocados de cidade que surgem das paredes. António, quando estávamos no primeiro andar, informa-me que as paredes, neste piso, têm a espessura de dois metros e vinte centímetros! Ao subir, reconheço a Cadeia da Relação por entre as grades de metal e, noutra janela, vejo o jardim onde ficou para trás um cavalete, pincéis, uma paleta e um edifício em construção, imóvel numa folha. Cada conjunto de degraus traz consigo mais pedaços de cidade, que vai ficando mais pequenina e mais completa. Vai-se formando, cada vez mais, uma mancha de laranja-escuro produzida pelo conjunto de telhados, e de amarelo, azul, vermelho e de todas as cores, provenientes das casas que se me vão preenchendo a retina. O Porto pinta-se-me no olhar e, concerteza, também no de António porque o olhar dele brilha cada vez mais, apesar desta ambiência escura que nos circunda.
No terceiro andar visualizamos um conjunto de sinos, uma imagem belíssima que nos leva a imaginar o conjunto de melodias que dali poderiam surgir, apesar do seu estatismo e silêncio aparente. E, no quarto andar, ele diz que se estiver atenta também ouço a passagem do tempo dada pelo girar sincopado dos ponteiros do relógio. Sinto que ouço mesmo, ou imagino ouvir. A realidade e a ficção andam de mãos dadas. Passamos por marcas de outras pessoas que também ali, pelo menos uma vez, viram o «belo absoluto», usando as palavras de Torga. Vitor, Hugo, Ema, Miguel, João, Duda, Lourenço, Bárbara, Rita, e promessas de Amor Eterno, talvez esquecidas ali mas que as paredes não esqueceram.
E, no sexto andar, 76 metros depois, depois de duzentos e vinte e cinco degraus pisados e repisados, o Porto invade-nos o olhar por entre os fogaréus que se impõem no alto a cortar o céu, e as balaustradas que nos cercam e nos separam no ar.
Perante o meu êxtase relativo ao ponto de vista propiciado pela altitude a que estamos, «António, o Pintor», conta-me a história, que já alguém lhe terá contado, de dois acrobatas espanhóis, José e Miguel Puertollano, contratados pelo realizador Raul de Caldevilla, que escalaram a Torre dos Clérigos, a fim de promover as Bolachas Invicta. «Menina, era uma plateia de 150.000 pessoas, espalhadas pela zona frontal e pelo Jardim da Cordoaria!».
Os trepadores iniciaram a subida sem recurso a qualquer apoio, sendo ela efectuada a pulso, o que fez da escalada uma atitude temerária que muita gente achava difícil de concretizar. Entre o segundo e o terceiro pisos, os trepadores sentiram alguma dificuldade, uma vez que este lanço, mais liso e difícil de vencer, sem recurso a cordas, tornava-o mais difícil de transpor. A assistência estremeceu, quando Miguel esteve na iminência de cair. A restante escalada correu sem grandes percalços, embora fosse uma iniciativa bem complicada, dada a altura que era necessário vencer, além do evidente cansaço provocado pelo esforço dispendido. Os homens eram arrojados e tinham experiência em iniciativas deste género. E assim lá chegaram ao cume, alcançando depois o cruzeiro. Aqui, cada qual com sua bandeja, sorveram um chá, acompanhado pelas bolachas da marca publicitada. O público delirou com a façanha. Porém, faltava efectuar o regresso a solo. No sentido inverso e novamente a pulso, os acrobatas iniciaram a descida, segundo dizem, não menos difícil e arriscada do que a subida. Terminada a façanha, os heróis foram aclamados, ficando o registo deste acontecimento gravado num filme documental de Raul de Caldevilla, intitulado “Um chá nas nuvens”.
Também nós descemos, e cada um com a cabeça nas nuvens, regressamos aos nossos afazeres.