domingo, 25 de outubro de 2009

LISBOA | deambulações




LXFACTORY

Foi em Alcântara, que um dos mais importantes complexos fabris de Lisboa, antiga Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense e, mais tarde, ligada à tipografia, deu origem à LXFACTORY.

Este espaço, em ruínas, é reaproveitado por um conjunto de profissionais ligados à moda, arte, multimédia, arquitectura, decoração, música, publicidade, escolas de actores, produtoras, uma livraria, que estabeleceram os seus gabinetes neste espaço, criando um nicho de indústrias criativas.

Quando o visitante passa o portão n.º 103 da Rua Rodrigues de Faria, tem como cartão de visita o slogan «LXF – Alegria no Trabalho» pintado num velho depósito de água. É uma pintura curiosa que usa a máxima da FNAT (Fundação Nacional da Alegria no Trabalho) que deu origem ao INATEL, no pós-25 de Abril, usando uma linha gráfica semelhante aos cartazes de propaganda política do Construtivismo Russo e aos murais pós-25 de Abril.

Quando entramos deparamos com uma placa com um mapa do local e respectiva sinalização dos vários espaços. É um espaço grande deteriorado, com tem dois cafés com refeições, esplanada e wireless.

Pontos negativos: não vemos mais nenhum sinal sobre que direcção tomar e que exposições estão abertas ao público. O visitante anda um pouco às escuras, a tentar localizar-se e encontrar alguma coisa que possa ver. Outro ponto negativo é o facto de, ao fim-de-semana, não haverem actividades e a maior parte dos estabelecimentos estarem fechados. Sendo que este nicho cultural se situa na capital, local onde proliferam os visitantes de férias e fim-de-semana, não me parece que este factor abone muito em seu favor.

No dia 23 de Outubro, sexta-feira, foi o III Open Day, na LxFactory, em parceria com o Museu do Oriente e com a participação especial da INOVCHP (comunidade Hindu de Portugal). Contou com actividades como performances no espaço exterior, promovidas pela ACT, Escola de Actores, workshop e provas de Sushi, exposições, ciclo de Filmes Bollywood, uma festa, UP2PARTY, entre outras actividades.





EXPERIMENTA DESIGN

Com o tema «o tempo» como pretexto, "It’s about time", a EXPERIMENTA DESIGN conta com Projectos Especiais, que ligam o design à cidade, aos cidadãos com trissomia 21 e aos idosos. Há quatro mostras dispersas pela cidade, "Quick, Quick, Slow – Texto, Imagem e Tempo" no Museu Berardo, "Pace of Design" no Picadeiro (Princípe Real), "Lapse in Time" e "Timeless".

QUICK, QUICK, SLOW

Quando subimos o corredor da escadaria que nos leva ao primeiro piso do Centro Cultural de Belém (CCB), deparamos com um conjunto de pequenas imagens que nos cercam e criam um padrão dinâmico.

Este espaço que alberga a exposição "Quick, Quick, Slow – Texto, Imagem e Tempo" mostra-nos um conjunto de trabalhos, em retrospectiva sobre o design gráfico e de comunicação, onde podemos ver cartazes, design editorial, genéricos de filmes, videoclips, entre outros.



AMÁLIA CORAÇÃO INDEPENDENTE

A exposição patente no Museu Colecção Berardo – CCB é uma forma contemporânea de representar o percurso da diva do Fado. Com um público de todos os géneros e de todas as idades, a afluência é provocada por uma faixa etária mais elevada, entre os 60 e os 80 anos.

Sem pressas os idosos, em grupo ou com a família, olham com a calma própria da sua idade, com entusiasmo e carinho, o conjunto de fotografias e indumentária da artista tão admirada e considerada um ícone nacional.

A exposição esta dividida em cinco momentos. Há uma secção dedicada à biografia da artista e é constituída por um espólio de cartazes das suas actuações, um conjunto de filmes que protagonizou como «Capas Negras e Fados» ou «A Severa», vestidos de palco e concertos. Há também um espaço que apresenta a carreira da artista através de fotografias, de uma forma cronológica

Momento da esposição que chama a atenção de muitos entusiastas é uma sala onde pendem três corações, um vermelho, um amarelo e um preto, que se assemelham ao «Coração de Viana». Quando nos aproximamos percebemos que cada uma destas obras é composta por um conjunto de talheres de plástico que terão sido derretidos para se moldarem à forma que lhes era destinada. Estas são três peças de Joana Vasconcelos, que estão em destaque, visto que nunca tinham estado expostas antes em conjunto.

A artista mostra o seu contentamento “Esta presença na exposição é muito importante para mim, pois estão aqui apresentados em conjunto os três Corações – Vermelho, do fado, do amor, dos sentimentos; O Dourado, que representa o ouro e a tradição portuguesa e o Preto, que simboliza a morte, a dor e o sofrimento”.

Uma homenagem aos dez anos que passaram desde a morte desta diva do Fado que passou pelo Cinema e que ainda hoje é recordada com carinho e algumas lágrimas, quiçá de saudade, aquela que cantou no seu Fado. "Se Deus o quis / Não te invejo essa conquista / Porque o meu é mais fadista / É o fado da saudade".

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Um Novo Olhar - Cedofeita

Amanhece timidamente e a claridade escassa vai espreitando à minha janela para não invadir casa alheia. Dizem as mulheres da minha cidade, apesar de gostarem de falar à janela e de observar o mundo que as rodeia do seu pedestal, que «Chove, choverá; Quem estiver em casa alheia depressa sairá». Mas é uma pena! Porque diz também o povo, e o povo tem sempre razão, que «Casa onde não entra sol, entra o médico» por isso o sol deveria ser sempre bem-vindo.

Deve ser por isso que, de manhã andam todas na rua, de sacos na mão a fazer as compras para o resto do dia. «Já que o Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé». Quando as questiono respondem-me que «Em casa não tens sardinha, na alheia pedes galinha» e lá vão elas comprar uma coisa ou outra para não ficarem descalças para o almoço.

E que bom aspecto tem o peixe que espreita do cesto daquela peixeira que o apregoa às gentes que passam, ou aquela outra que o transporta num balde com alguma dificuldade mas que não deixa de nos sorrir!

Tais gentes não levam o peixe, apenas passam. Quem se dá ao trabalho de as observar, vê apenas um monte de gente que passa e se cruza em compasso de valsa. As cores das roupas, a diversidade de estilos, a diferença de proveniência e idade entre todos cria um padrão colorido e complexo.

A peixeira, essa, continua no seu cântico de peixeira a vender o seu peixe mesmo que ninguém o compre. É aquela responsabilidade de ser quem é! Peixeira que é peixeira apregoa o peixe em plenos pulmões! Não podemos quebrar com as nossas tradições culturais e muito menos com aquilo que esperam de nós. Talvez ela até não pense em nada disso, apenas foi ensinada a ser assim, mas eu gosto de imaginar que o faz…

Quem vem a esta zona não sabe o quão especial e importante se está a tornar. Entendendo por zona toda esta massa uniforme de ruas que convergem e se cruzam, entre as quais a Rua de Cedofeita com todo o comércio tradicional e já algumas lojas multinacionais, a Praça dos Leões onde podemos encontrar o célebre e antigo café Piolho D’Ouro, a Rua Miguel Bombarda celebrizada pelas suas galerias de arte, a Travessa de Cedofeita que conseguiu absorver alguma movimentação com o aparecimento do Espaço 77, e com a recente Casa do Ló, e a Rua do Breyner com o Breyner 85.

Podemos associar este sítio à natalidade visto que os portuenses que não nasciam em casa, nasciam na Maternidade Júlio Dinis sendo frequente aparecer no tal bilhete que nos identifica «Natalidade: Cedofeita» ou, curiosamente, «Natalidade: Massarelos». Contudo, todas as mães davam à luz no mesmo sítio só que, dado o elevado número de nascimentos, para não sobrecarregar uma freguesia, a de Cedofeita, começaram a dividir os encargos. É justo! Se no ano de 1954 os bebés (que agora são pais e, quem sabe avós) eram nascidos em Cedofeita, os bebés de 1955 eram de Massarelos, e por aí fora.

Mas se quisermos ver para além disso, desse tempo intemporal, esta área onde há bem pouco tempo não se via vivalma a partir das 20h da noite, nos dias que correm é onde, à noite, toda a gente se concentra. A partir das 23h começamos a ver o aglomerado de estudantes, artistas e gentes que gostam de estar ali por hábitos que nunca se perdem, condensados no Piolho. E são-nos de todas as idades, de todas as aparências. Estão ali para não se perderem das suas recordações, encontrarem pessoas que conheceram ao longo da vida, talvez pelo calor humano que se proporciona pela reunião de tanta gente. E dali partem para o Espaço 77, Casa do Ló, «Galerias» nome que se dá ao conjunto de bares/cafés que surgem pelo comprimento da Rua da Galeria de Paris, intitulada assim porque, em 1903, a ideia original era construir uma cobertura envidraçada semelhante às galerias parisienses, para a Rua Cândido dos Reis onde se situa o Plano B, ou a do Breyner, onde no número 85 podem encontrar o Breyner 85, e, se andarem mais um pouco, até São Bento ou, mais um pouco ainda para a Rua Passos Manuel, também encontram algumas ofertas se as outras não forem suficientes.

E há os mendigos que os acompanham e contam histórias. De dia, continuam por lá e há o que de copo na mão que talvez tenha apanhado um dos que sobraram do dia anterior pelo chão, em frente à Igreja do Carmo, continua nesta tarefa. Outros, observam ou dormitam nas escadas da igreja enquanto a missa não começa e não há grande afluência.

Outros resquícios de um espaço maioritariamente nocturno e alternativo, talvez alternativo à apatia que por vezes se gera, são os grafittis e stencils de revolta ou que têm apenas um valor de expressão artística e que surgem nas paredes, rivalizando com cartazes que promovem iniciativas culturais e de outros géneros, tal como as inaugurações das galerias de Miguel Bombarda que cativa gentes de todas as proveniências, tendo uma enormíssima adesão!

Essa cor e plasticidade, de dia, confunde-se e funde-se com o corredor de lojas que se situa na Rua de Cedofeita. Há aqueles que passam, outros que esperam na soleira da porta, os que estão na esplanada e que vão vendo os outros passar.

A Travessa de Cedofeita, essa, de dia, transforma-se em local de passagem, onde a colorida e extensa parede de graffiti, stencil e artes afins se revela por trás de tal movimentação desenfreada. É assim a movida do centro da cidade! Há sempre os que passam sabe-se lá para onde e que nem têm nem tempo para dizer «É tarde, é tarde», como o faria o Coelho Branco dos livros de Lewis Carroll.

A música dos cânticos eclesiásticos fascina os turistas e dá-lhes uma outra face alternativa à face nocturna da cidade, miscelânea de burburinhos, danças e rock, e aproveitam o sol com este som como pano de fundo, lendo ou dormitando na relva.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Gaia – Um Novo Olhar


A cidade acorda vestida de cinzento. Mas aquele lugar ao pé do rio, que noutra época serviu de porto de ligação do Norte e do Sul, Portus Cale, tem um acordar diferente do resto da cidade.

Ali, longe do rebuliço das gentes apressadas, do barulho dos motores e do cheiro a combustível, os pescadores esperam, com a paciência necessária para este tipo de labor, que o peixe que tem a sua calma de peixe e que se calhar até já comeu hoje coisinha melhor, morda o isco. Uns estão isolados, pois se calhar não gostam de muito burburinho, outros riem e talvez conversem sobre a vitória do FCP do dia anterior. As bandeiras do clube esvoaçam nas varandas e nos estendais, juntamente com cachecóis e outro tipo de adereços.

Nessas mesmas varandas com os seus floreados em metal característicos de um tempo e de uma cultura, as mulheres, por entre a brisa e o aroma intenso do rio, aproveitam para estender a roupa e dar dois dedos de conversa com a vizinha da varanda do lado, ou com uma outra que descasca batatas ao ar livre a quem um cão gigante e zeloso faz companhia.

O rio murmura uma canção que não compreendo, talvez uma música de pescadores, talvez conte apenas histórias de outros dias, e as gaivotas acompanham-no com a sua voz e o seu bailar. Os peixes ao ver tamanha azáfama, fogem, não vão as gaivotas ainda não terem tomado o pequeno-almoço. Os pescadores, esses, não se ralam e continuam a esperar que algum morda o isco. Coitados dos peixes, sempre entre a espada e a parede!

Os barcos, pequenos preguiçosos, ainda dormem, embalados pelo leito do rio. Noutros tempos não tinham esta vida! Não havia outra forma de passar para a outra margem, o Porto, senão com a sua ajuda! Até houve uma ponte, a Ponte das Barcas, que foi a primeira de que se ouviu falar, e que era composta por uma série de barcas postas lado a lado e amarradas. Nessa altura, as barcas eram todas muito unidas. Bons tempos!... Mas um belo dia, talvez tão cinzento como hoje, os franceses que tinham cercado o Porto soltaram uma das barcas que compunha a ponte e, quando a população portuense fugia a refugiar-se em Gaia caiu ao rio, morrendo dezenas de pessoas.

Penso que terá sido nesse momento de tragédia que Porto e Gaia decidiram que não mais iam deixar de estar ligados porque já ouvi alguém dizer por aí, se calhar foi o vento, «É assim meu amigo! A união faz a força». A Ponte das Barcas foi substituída pela Ponte Pênsil e, mais tarde pela Ponte D. Luís. Outras pontes surgiram também para reforçar esta ligação, a Ponte D. Maria Pia, a Ponte da Arrábida, a Ponte S. João e a Ponte do Freixo, e foi assim que Porto e Gaia não mais se separaram.

Nos dias de hoje, podemos ver pessoas a atravessar o rio através da ponte, tal como vemos o comboio, e, agora, o metro também.
Do outro lado do Rio, naquela a que se chama Ribeira, podemos conhecer um pintor que fala um bocadinho português e um pouco de inglês, e que passa os dias a retratar o Porto e Gaia, cidade que agora também é sua.

Sentado do lado de cá, observa a outra margem, e o seu olhar sobre uma cidade que um dia lhe terá sido estranha, talvez transporte consigo algo da cidade onde nasceu e o faça desenhar um bocadinho dela nas suas gravuras, mesmo quando desenha o Porto, para a não esquecer. É difícil separarmo-nos das nossas origens porque isso traz-nos alguma «saudade». A saudade que cantam os fados, tão portuguesa!

Tal como Carlos do Carmo ou Amália Rodrigues cantaram a saudade à sua Lisboa, músicos portuenses cantam à sua cidade com o mesmo sentimento, assim como o faz Pedro Abrunhosa.

(música «Barco Para a Afurada» de Pedro Abrunhosa)
«Rasga o silêncio da estrada
Rio madrugada,
D'ouro, marfim.
O Barco para a Afurada
Cidade cansada
Tão longe de mim.

Rezam padres discretos, selectos
E amores inquietos
Navegam o rio,
Mulheres de futuro cansado
Murmuram um fado,
Enganam o frio.»

E é cheia de frio que a mãe deste pintor na qual podemos ver a marca do tempo, um tempo dela que não conhecemos e que não parece querer contar, aponta para a outra margem dizendo-nos num inglês improvisado algo sobre o Monte da Virgem. Mas não é uma mulher de muitas falas, talvez seja uma das mulheres de «futuro cansado» que fala Abrunhosa, ou talvez queira só que a deixemos na sua paz para observar o rio.

Quem sabe alguém, no miradouro do Monte da Virgem, olhe por ela também. E acabei por não lhe contar a Lenda de Miragaia! Talvez gostasse de a conhecer. E como se chamaria esta senhora?

Conta a lenda que Gaia chorou neste mesmo Rio Douro que atravessava de barco depois do seu marido, o rei de Leão, ter morto o seu amado Abencalão, rei mouro, e ter incendiado o seu castelo que se situava perto da foz do rio e para onde teria raptado Gaia.
D. Ramiro, num momento de fúria, nas palavras de Almeida Garrett, terá dito:

«Pois mira, Gaia! E dizendo
Da espada foi arrancar:
Mira, Gaia, que esses olhos
Não terão mais que mirar».

O Castelo do Rei Ramiro, esse, sabemos que existe e terá pertencido à família de Almeida Garrett. Podem encontrá-lo na Rua Rei Ramiro, que vai dar ao cais de Gaia.

Mas muitos casais, com outra sina e noutro tempo diferente de Gaia e Abencalão, miram o rio. Há aqueles, que passeiam de óculos escuros e que parecem não ver nada, mas todos sabemos que ninguém fica indiferente ao brilho do rio Douro, e há os turistas que tiram fotografias e compram postais e recordações para alguém noutra parte do mundo poder olhar para o mesmo rio e para a cidade «Das Três Pontes Sobre o Rio», nome de um filme feito por um realizador francês, Jean-Claude Biette, que veio dar a conhecer mais um olhar sobre a cidade.

domingo, 26 de abril de 2009

O Pintor da Cidade

Sentado no banco do jardim, «António, o Pintor», como o conhecem as pessoas das redondezas, de pincel na mão vai medindo a distância entre fogaréus, santos, cornijas e balaustradas, reproduzindo, talvez, os mesmos movimentos que, outrora, também Nasoni terá feito quando idealizava este monumento e o inseria no espaço envolvente.

A gente que se acumula ao vê-lo fazer estes gestos em jeitos de mágico, captando a alma das coisas que o seu olhar dita e a mão reconstrói, mesmo nada sabendo do arquitecto, pintor e decorador toscano, de gosto «barroco-rocócó», vê o edifício, edificado em 1763, a ser reconstruído em papel. Ainda que a Torre dos Clérigos tenha sido edificada por labor de tantas mãos em sintonia, um conjunto de gestos harmónicos, sincopados, desenvolvidos pela relação entre o maestro e a sua orquestra, e tenha demorado nove anos a tomar forma, António reconstrói esse processo. Mede, enquadra-a no espaço com traços gerais e começa a imaginar, partindo da planta elíptica da igreja, os espaços que tão bem conhece desde criança, a igreja com uma galeria que percorre a nave e a conduz até à capela-mor, inovação arquitectónica inserida pela primeira vez nas igrejas do norte do país, a enfermaria, a secretaria e a torre de 76 metros de altura e 6 andares que é a mais alta de Portugal. Pousa o pincel e a paleta.

São 13h. O sol reflecte nos seus óculos pequeninos que insiste em manter na ponta do nariz para conseguir dois olhares de um mesmo objecto. António tem uma deformação no olho esquerdo que os entendidos denominam de Hipermetropia, o povo generaliza dizendo «Coitado do Homem, é míope, é vesgo de uma vista», colmatando com a célebre frase «É assim a vida», mas, na prática, esta deformação, ou se quisermos, especialidade do olhar, caracteriza-se por um erro de focalização da imagem no olho porque o olho do hipermétrope é um pouco menor do que o normal. Contudo, tem boa visão ao longe. «É a vida!», sim, a vida traz-nos destas coisas, nascemos com ferramentas para vermos o mundo de formas diferentes, coisa que não conseguíamos por processo de massificação à nascença. Há algures também um pintor que nos reproduz com todo o empenho para que nunca saia um olho igual ao outro.

Ouve-se um acordeonista ao longe. Talvez, também ele veja a torre de outra forma, ou não veja, a sinta pelo recorte que a luz do início da tarde produz contra a sua face rosada pelo calor.

É com este fundo sonoro que o pintor tira o casaco, sem nunca se separar da boina bege, desbotada pelo sol. Trauteia uma qualquer canção, «A Senhora veio de Roma e em Lisboa foi c'roada. Em Braga foi padroeira e no Sameiro c'locada», enquanto ao compasso da música, ou assim me parece, vai tirando elementos que sugerem que vai almoçar, um pão «molete», uma garrafa de vinho tinto, e um taparuer com aquilo que parece arroz de frango. Para não invadir esse momento, assim como as outras pessoas que o observavam, preparo-me para ir embora mas ele sorri e diz-me «A minha avó era oriunda de Braga e mudou-se para cá ainda eu não era nascido. Costumava cantar esta cantilena que trouxe de lá e tinha uma voz celestial. Uma das coisas que me recordo dela é de ir à missa na Igreja dos Clérigos e de a ouvir cantar com agrado e à-vontade todos os cânticos ao longo do acontecimento. Conjuntamente com o som afunilado e solene produzido pelo órgão, a luz matinal, simétrica e intensa, proveniente da abóbada e das janelas laterais e que se reflecte na talha dourada e nos frescos das Passagens da Vida de Cristo, davam-me a sensação de um universo que contrapunha ao mundo profano, um universo divino e de paz». Aproveito a deixa para saber mais sobre aquele pintor.

Fala-me da igreja e da torre. Conta-me que do topo da torre se pode ver toda a cidade, numa panorâmica contínua propiciada pela sua planta circular, fala-me da sua paixão pela cidade e o prazer de a representar, confessa-me como o Porto é bonito para ele quando a luz reflecte no rio, a mesma luz que entra na igreja. E eu confesso-lhe que nunca subi à torre.

No momento seguinte, subimos à torre.

Como a parte antiga da cidade, a torre é de granito e dá-me uma sensação de conforto e familiaridade. À medida que subimos, sinto-me levitar pela cidade, uma e outra abertura, outra e mais outra janela. Sinto-me subir e vejo bocados de cidade que surgem das paredes. António, quando estávamos no primeiro andar, informa-me que as paredes, neste piso, têm a espessura de dois metros e vinte centímetros! Ao subir, reconheço a Cadeia da Relação por entre as grades de metal e, noutra janela, vejo o jardim onde ficou para trás um cavalete, pincéis, uma paleta e um edifício em construção, imóvel numa folha. Cada conjunto de degraus traz consigo mais pedaços de cidade, que vai ficando mais pequenina e mais completa. Vai-se formando, cada vez mais, uma mancha de laranja-escuro produzida pelo conjunto de telhados, e de amarelo, azul, vermelho e de todas as cores, provenientes das casas que se me vão preenchendo a retina. O Porto pinta-se-me no olhar e, concerteza, também no de António porque o olhar dele brilha cada vez mais, apesar desta ambiência escura que nos circunda.

No terceiro andar visualizamos um conjunto de sinos, uma imagem belíssima que nos leva a imaginar o conjunto de melodias que dali poderiam surgir, apesar do seu estatismo e silêncio aparente. E, no quarto andar, ele diz que se estiver atenta também ouço a passagem do tempo dada pelo girar sincopado dos ponteiros do relógio. Sinto que ouço mesmo, ou imagino ouvir. A realidade e a ficção andam de mãos dadas. Passamos por marcas de outras pessoas que também ali, pelo menos uma vez, viram o «belo absoluto», usando as palavras de Torga. Vitor, Hugo, Ema, Miguel, João, Duda, Lourenço, Bárbara, Rita, e promessas de Amor Eterno, talvez esquecidas ali mas que as paredes não esqueceram.

E, no sexto andar, 76 metros depois, depois de duzentos e vinte e cinco degraus pisados e repisados, o Porto invade-nos o olhar por entre os fogaréus que se impõem no alto a cortar o céu, e as balaustradas que nos cercam e nos separam no ar.

Perante o meu êxtase relativo ao ponto de vista propiciado pela altitude a que estamos, «António, o Pintor», conta-me a história, que já alguém lhe terá contado, de dois acrobatas espanhóis, José e Miguel Puertollano, contratados pelo realizador Raul de Caldevilla, que escalaram a Torre dos Clérigos, a fim de promover as Bolachas Invicta. «Menina, era uma plateia de 150.000 pessoas, espalhadas pela zona frontal e pelo Jardim da Cordoaria!».

Os trepadores iniciaram a subida sem recurso a qualquer apoio, sendo ela efectuada a pulso, o que fez da escalada uma atitude temerária que muita gente achava difícil de concretizar. Entre o segundo e o terceiro pisos, os trepadores sentiram alguma dificuldade, uma vez que este lanço, mais liso e difícil de vencer, sem recurso a cordas, tornava-o mais difícil de transpor. A assistência estremeceu, quando Miguel esteve na iminência de cair. A restante escalada correu sem grandes percalços, embora fosse uma iniciativa bem complicada, dada a altura que era necessário vencer, além do evidente cansaço provocado pelo esforço dispendido. Os homens eram arrojados e tinham experiência em iniciativas deste género. E assim lá chegaram ao cume, alcançando depois o cruzeiro. Aqui, cada qual com sua bandeja, sorveram um chá, acompanhado pelas bolachas da marca publicitada. O público delirou com a façanha. Porém, faltava efectuar o regresso a solo. No sentido inverso e novamente a pulso, os acrobatas iniciaram a descida, segundo dizem, não menos difícil e arriscada do que a subida. Terminada a façanha, os heróis foram aclamados, ficando o registo deste acontecimento gravado num filme documental de Raul de Caldevilla, intitulado “Um chá nas nuvens”.

Também nós descemos, e cada um com a cabeça nas nuvens, regressamos aos nossos afazeres.