terça-feira, 26 de maio de 2009

Gaia – Um Novo Olhar


A cidade acorda vestida de cinzento. Mas aquele lugar ao pé do rio, que noutra época serviu de porto de ligação do Norte e do Sul, Portus Cale, tem um acordar diferente do resto da cidade.

Ali, longe do rebuliço das gentes apressadas, do barulho dos motores e do cheiro a combustível, os pescadores esperam, com a paciência necessária para este tipo de labor, que o peixe que tem a sua calma de peixe e que se calhar até já comeu hoje coisinha melhor, morda o isco. Uns estão isolados, pois se calhar não gostam de muito burburinho, outros riem e talvez conversem sobre a vitória do FCP do dia anterior. As bandeiras do clube esvoaçam nas varandas e nos estendais, juntamente com cachecóis e outro tipo de adereços.

Nessas mesmas varandas com os seus floreados em metal característicos de um tempo e de uma cultura, as mulheres, por entre a brisa e o aroma intenso do rio, aproveitam para estender a roupa e dar dois dedos de conversa com a vizinha da varanda do lado, ou com uma outra que descasca batatas ao ar livre a quem um cão gigante e zeloso faz companhia.

O rio murmura uma canção que não compreendo, talvez uma música de pescadores, talvez conte apenas histórias de outros dias, e as gaivotas acompanham-no com a sua voz e o seu bailar. Os peixes ao ver tamanha azáfama, fogem, não vão as gaivotas ainda não terem tomado o pequeno-almoço. Os pescadores, esses, não se ralam e continuam a esperar que algum morda o isco. Coitados dos peixes, sempre entre a espada e a parede!

Os barcos, pequenos preguiçosos, ainda dormem, embalados pelo leito do rio. Noutros tempos não tinham esta vida! Não havia outra forma de passar para a outra margem, o Porto, senão com a sua ajuda! Até houve uma ponte, a Ponte das Barcas, que foi a primeira de que se ouviu falar, e que era composta por uma série de barcas postas lado a lado e amarradas. Nessa altura, as barcas eram todas muito unidas. Bons tempos!... Mas um belo dia, talvez tão cinzento como hoje, os franceses que tinham cercado o Porto soltaram uma das barcas que compunha a ponte e, quando a população portuense fugia a refugiar-se em Gaia caiu ao rio, morrendo dezenas de pessoas.

Penso que terá sido nesse momento de tragédia que Porto e Gaia decidiram que não mais iam deixar de estar ligados porque já ouvi alguém dizer por aí, se calhar foi o vento, «É assim meu amigo! A união faz a força». A Ponte das Barcas foi substituída pela Ponte Pênsil e, mais tarde pela Ponte D. Luís. Outras pontes surgiram também para reforçar esta ligação, a Ponte D. Maria Pia, a Ponte da Arrábida, a Ponte S. João e a Ponte do Freixo, e foi assim que Porto e Gaia não mais se separaram.

Nos dias de hoje, podemos ver pessoas a atravessar o rio através da ponte, tal como vemos o comboio, e, agora, o metro também.
Do outro lado do Rio, naquela a que se chama Ribeira, podemos conhecer um pintor que fala um bocadinho português e um pouco de inglês, e que passa os dias a retratar o Porto e Gaia, cidade que agora também é sua.

Sentado do lado de cá, observa a outra margem, e o seu olhar sobre uma cidade que um dia lhe terá sido estranha, talvez transporte consigo algo da cidade onde nasceu e o faça desenhar um bocadinho dela nas suas gravuras, mesmo quando desenha o Porto, para a não esquecer. É difícil separarmo-nos das nossas origens porque isso traz-nos alguma «saudade». A saudade que cantam os fados, tão portuguesa!

Tal como Carlos do Carmo ou Amália Rodrigues cantaram a saudade à sua Lisboa, músicos portuenses cantam à sua cidade com o mesmo sentimento, assim como o faz Pedro Abrunhosa.

(música «Barco Para a Afurada» de Pedro Abrunhosa)
«Rasga o silêncio da estrada
Rio madrugada,
D'ouro, marfim.
O Barco para a Afurada
Cidade cansada
Tão longe de mim.

Rezam padres discretos, selectos
E amores inquietos
Navegam o rio,
Mulheres de futuro cansado
Murmuram um fado,
Enganam o frio.»

E é cheia de frio que a mãe deste pintor na qual podemos ver a marca do tempo, um tempo dela que não conhecemos e que não parece querer contar, aponta para a outra margem dizendo-nos num inglês improvisado algo sobre o Monte da Virgem. Mas não é uma mulher de muitas falas, talvez seja uma das mulheres de «futuro cansado» que fala Abrunhosa, ou talvez queira só que a deixemos na sua paz para observar o rio.

Quem sabe alguém, no miradouro do Monte da Virgem, olhe por ela também. E acabei por não lhe contar a Lenda de Miragaia! Talvez gostasse de a conhecer. E como se chamaria esta senhora?

Conta a lenda que Gaia chorou neste mesmo Rio Douro que atravessava de barco depois do seu marido, o rei de Leão, ter morto o seu amado Abencalão, rei mouro, e ter incendiado o seu castelo que se situava perto da foz do rio e para onde teria raptado Gaia.
D. Ramiro, num momento de fúria, nas palavras de Almeida Garrett, terá dito:

«Pois mira, Gaia! E dizendo
Da espada foi arrancar:
Mira, Gaia, que esses olhos
Não terão mais que mirar».

O Castelo do Rei Ramiro, esse, sabemos que existe e terá pertencido à família de Almeida Garrett. Podem encontrá-lo na Rua Rei Ramiro, que vai dar ao cais de Gaia.

Mas muitos casais, com outra sina e noutro tempo diferente de Gaia e Abencalão, miram o rio. Há aqueles, que passeiam de óculos escuros e que parecem não ver nada, mas todos sabemos que ninguém fica indiferente ao brilho do rio Douro, e há os turistas que tiram fotografias e compram postais e recordações para alguém noutra parte do mundo poder olhar para o mesmo rio e para a cidade «Das Três Pontes Sobre o Rio», nome de um filme feito por um realizador francês, Jean-Claude Biette, que veio dar a conhecer mais um olhar sobre a cidade.

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