segunda-feira, 15 de junho de 2009

Um Novo Olhar - Cedofeita

Amanhece timidamente e a claridade escassa vai espreitando à minha janela para não invadir casa alheia. Dizem as mulheres da minha cidade, apesar de gostarem de falar à janela e de observar o mundo que as rodeia do seu pedestal, que «Chove, choverá; Quem estiver em casa alheia depressa sairá». Mas é uma pena! Porque diz também o povo, e o povo tem sempre razão, que «Casa onde não entra sol, entra o médico» por isso o sol deveria ser sempre bem-vindo.

Deve ser por isso que, de manhã andam todas na rua, de sacos na mão a fazer as compras para o resto do dia. «Já que o Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé». Quando as questiono respondem-me que «Em casa não tens sardinha, na alheia pedes galinha» e lá vão elas comprar uma coisa ou outra para não ficarem descalças para o almoço.

E que bom aspecto tem o peixe que espreita do cesto daquela peixeira que o apregoa às gentes que passam, ou aquela outra que o transporta num balde com alguma dificuldade mas que não deixa de nos sorrir!

Tais gentes não levam o peixe, apenas passam. Quem se dá ao trabalho de as observar, vê apenas um monte de gente que passa e se cruza em compasso de valsa. As cores das roupas, a diversidade de estilos, a diferença de proveniência e idade entre todos cria um padrão colorido e complexo.

A peixeira, essa, continua no seu cântico de peixeira a vender o seu peixe mesmo que ninguém o compre. É aquela responsabilidade de ser quem é! Peixeira que é peixeira apregoa o peixe em plenos pulmões! Não podemos quebrar com as nossas tradições culturais e muito menos com aquilo que esperam de nós. Talvez ela até não pense em nada disso, apenas foi ensinada a ser assim, mas eu gosto de imaginar que o faz…

Quem vem a esta zona não sabe o quão especial e importante se está a tornar. Entendendo por zona toda esta massa uniforme de ruas que convergem e se cruzam, entre as quais a Rua de Cedofeita com todo o comércio tradicional e já algumas lojas multinacionais, a Praça dos Leões onde podemos encontrar o célebre e antigo café Piolho D’Ouro, a Rua Miguel Bombarda celebrizada pelas suas galerias de arte, a Travessa de Cedofeita que conseguiu absorver alguma movimentação com o aparecimento do Espaço 77, e com a recente Casa do Ló, e a Rua do Breyner com o Breyner 85.

Podemos associar este sítio à natalidade visto que os portuenses que não nasciam em casa, nasciam na Maternidade Júlio Dinis sendo frequente aparecer no tal bilhete que nos identifica «Natalidade: Cedofeita» ou, curiosamente, «Natalidade: Massarelos». Contudo, todas as mães davam à luz no mesmo sítio só que, dado o elevado número de nascimentos, para não sobrecarregar uma freguesia, a de Cedofeita, começaram a dividir os encargos. É justo! Se no ano de 1954 os bebés (que agora são pais e, quem sabe avós) eram nascidos em Cedofeita, os bebés de 1955 eram de Massarelos, e por aí fora.

Mas se quisermos ver para além disso, desse tempo intemporal, esta área onde há bem pouco tempo não se via vivalma a partir das 20h da noite, nos dias que correm é onde, à noite, toda a gente se concentra. A partir das 23h começamos a ver o aglomerado de estudantes, artistas e gentes que gostam de estar ali por hábitos que nunca se perdem, condensados no Piolho. E são-nos de todas as idades, de todas as aparências. Estão ali para não se perderem das suas recordações, encontrarem pessoas que conheceram ao longo da vida, talvez pelo calor humano que se proporciona pela reunião de tanta gente. E dali partem para o Espaço 77, Casa do Ló, «Galerias» nome que se dá ao conjunto de bares/cafés que surgem pelo comprimento da Rua da Galeria de Paris, intitulada assim porque, em 1903, a ideia original era construir uma cobertura envidraçada semelhante às galerias parisienses, para a Rua Cândido dos Reis onde se situa o Plano B, ou a do Breyner, onde no número 85 podem encontrar o Breyner 85, e, se andarem mais um pouco, até São Bento ou, mais um pouco ainda para a Rua Passos Manuel, também encontram algumas ofertas se as outras não forem suficientes.

E há os mendigos que os acompanham e contam histórias. De dia, continuam por lá e há o que de copo na mão que talvez tenha apanhado um dos que sobraram do dia anterior pelo chão, em frente à Igreja do Carmo, continua nesta tarefa. Outros, observam ou dormitam nas escadas da igreja enquanto a missa não começa e não há grande afluência.

Outros resquícios de um espaço maioritariamente nocturno e alternativo, talvez alternativo à apatia que por vezes se gera, são os grafittis e stencils de revolta ou que têm apenas um valor de expressão artística e que surgem nas paredes, rivalizando com cartazes que promovem iniciativas culturais e de outros géneros, tal como as inaugurações das galerias de Miguel Bombarda que cativa gentes de todas as proveniências, tendo uma enormíssima adesão!

Essa cor e plasticidade, de dia, confunde-se e funde-se com o corredor de lojas que se situa na Rua de Cedofeita. Há aqueles que passam, outros que esperam na soleira da porta, os que estão na esplanada e que vão vendo os outros passar.

A Travessa de Cedofeita, essa, de dia, transforma-se em local de passagem, onde a colorida e extensa parede de graffiti, stencil e artes afins se revela por trás de tal movimentação desenfreada. É assim a movida do centro da cidade! Há sempre os que passam sabe-se lá para onde e que nem têm nem tempo para dizer «É tarde, é tarde», como o faria o Coelho Branco dos livros de Lewis Carroll.

A música dos cânticos eclesiásticos fascina os turistas e dá-lhes uma outra face alternativa à face nocturna da cidade, miscelânea de burburinhos, danças e rock, e aproveitam o sol com este som como pano de fundo, lendo ou dormitando na relva.

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