quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Papalagui, Tuiavii de Tiavea | 10/2005

Pela altura do cinema mudo “O mesmo se dá com as imagens com as imagens que se vêem na parede. Abem a boca, temos a certeza que estão a falar, e no entanto não se ouve (…)”, um chefe índio de uma tribo da Polinésia, Tuiavii, vem visitar o continente europeu. Com o seu nível de conhecimento empírico, observa, questiona e crítica cada hábito europeu, apercebendo-se com grande facilidade das características fulcrais, originárias dos nossos grandes problemas. O maior de todos os problemas foi o facto de o europeu ter querido ser cada vez maior, a sua ambição desmedida foi crescendo mais e mais, em proporção com aquilo que foi obtendo. Agora, num presente imediato, é impossível voltar atrás. O Europeu já não sabe viver em harmonia.

Inventou o desprezo, o ódio, o receio, o desdém, estimulou o individualismo, a obsessão pelos bens materiais, a qual gera todo um objectivo de vida. O outro desapareceu, deixamos de saber apreciar o sol, a nossa relação com a sociedade, a cooperação, tudo o que construímos. Porque os dias são curtos demais para quem tem que ganhar “metal redondo e papel duro”. Tudo é demasiado pouco para quem tem tudo e quer mais porque o muito não é suficiente.

A primeira questão que Tuiavii coloca é o porquê de cobrir as carnes com panos tão incómodos e que não propiciam o movimento. Não percebe porque vivemos tão encaixotados em cima das coisas, que nos sufocam e absorvem o oxigénio. Não compreende porque uns têm muitas “cabanas” grandes e outros vivem na rua sem tecto para morar. Não percebe porque é que aqueles que trabalham são desprezados e os outros que não fazem nada são respeitados. É também incompreensível para Tuiavii porque uns e outros se odeiam tanto. Apercebe-se que a culpa é do metal redondo e do papel forte que cria diferenças entre os Papalaguis. O dinheiro é o Deus do Homem branco. É devido ao dinheiro que o Papalagui nunca tem tempo. O europeu tem também a mania de arranjar profissões para todas as acções que teria de realizar diariamente. De maneira que o trabalho em vez de ser dividido é seccionado e realizado sempre da mesma forma, numa atitude individual, o que só torna o homem Branco ainda mais cinzento. Tuiavii descobre a função do cinema, a de dar uma ilusão de realidade. Aí, o Papalagui revê-se nas personagens e chora, ri, sonha, já que no dia a dia não tem tempo de ter sentimentos, de experimentar emoções. Os dias são tão cinzentos, a realidade é uma desilusão, que prefere não a ver. O cinema dessa altura seria uma reminiscência das telenovelas nos dias de hoje. As pessoas ficam de olhos fixos no ecrã, com o cérebro parado, à espera que aconteça alguma coisa nas suas vidas que mude a situação política, económica e social actual, enquanto elas experimentam uma vida fictícia, num tempo irreal. É compreensível. O telejornal é incomodativo, a esperança de mudança desmorona-se de notícia para notícia. O Papalagui precisa de sossego interior, de sol e de não pensar na vida como os índios, que vivem ao sabor da música. Mas nada o satisfaz.

O Homem Branco prega o Amor, o respeito pelos outros, a partilha, mas faz tudo ao contrário, rouba, odeia, rivaliza com os outros, despreza-os. E os”representantes de Deus” são Papalaguis iguais a todos os outros, corrompidos pelo seu próprio veneno, pela ambição que contamina os genes das gerações vindouras.

Tuiavii faz-nos ver o quão ridículos nós somos por queremos mais do que um bocadinho de sol e companheirismo, por nos termos perdido e não haver caminho de retorno.


Bárbara Veiga

Loucura, Mário de Sá Carneiro | 10/2005

Considero a “Loucura” uma obra de leitura obrigatória por ser um marco histórico de uma fase literária. Foi um livro que me puxou à leitura desenfreada pelo facto de ser controverso ao meu pensamento nesta fase do percurso. Talvez por já ter pensado assim, talvez por de momento julgar que a vida deve ser vivida numa luta diária pela busca da concretização dos nossos ideais, pela procura de nos aperfeiçoarmos intelectualmente cada dia mais. E uma vida não chega. Mas a solução não é cruzar os braços e acomodarmo-nos ao destino por não o conseguirmos mudar, nem acabar com a vida, mas procurar fazer o máximo que conseguirmos, apesar de, frequentemente, vários aspectos de funcionamento da sociedade nos desiludirem e nos incitarem a desistir de pensar.

A personagem principal desta obra tida, em certa parte, como um herói social, que se matou por desespero porque era diferente, porque era contra tudo, não era mais do que um dandy, «Rico, não fizera da sua arte um ramo de comércio», entrou no circulo fechado do Salon de 1904, o que só prova que sabia também gerir as suas influencias, de um «egoísmo atroz», prepotente, que se julgava dono da razão, egocêntrico, os seus grandes problemas introspectivos estavam apenas ligados com a sua pessoa que era o centro do universo, pensava-se diferente mas era, na verdade, igual a todos os «loucos» da sua geração, tal como Sá Carneiro. Esta personagem, Raul, é um intelectual, no verdadeiro sentido que eu atribuo a esta palavra. Pensa, fala, mas nada faz para mudar o que o rodeia. Ao contrário de Almada Negreiros que viveu até aos setenta e três anos para ser incómodo á sociedade, e aperfeiçoou-se, durante esse tempo, em diversas áreas artísticas, afirmando, por oposição, “Eu sou o resultado consciente da minha própria experiência”e, afirma também ainda, agora relativamente ao conhecimento “Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria. Deve haver certamente outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estarei perdido.".

Se por um lado, esta obra literária trata os problemas da desadequação de certos indivíduos face a uma sociedade fútil e a critica, levantando questões relativamente às regras sociais, ao Matrimónio, “No entanto, o acaso fizera com que Raul encontrasse e amasse alguém que não lhe poderia pertencer senão por meio deste contracto.”, à Lua-de-Mel, “A moda exige a viagem de núpcias”, à posição do governo português face à Arte que não quis dar setenta contos pelo “Álcool”, “essa maravilha de arte nacional”, ficando na mão de um “milionário americano, rei de qualquer coisa”. Denuncia-nos como animais reprimidos por um sistema de leis auto-infligidas, “eternos preconceitos da educação totalmente errada”, “comedidos no prazer, reservados na loucura”, à ideia de que o trabalho e o lazer são a cura para todos «os males da cabeça», “Expulsa esses pensamentos alucinantes… Distrai-te, trabalha… Ama a tua linda mulher”, aos «tachos», neste caso relativamente a Luísa Vaz, uma “actrizita”, “mexera os cordelinhos o apaixonado crítico de certa gazeta política”. Levanta o problema do Ser, “Saber quem uma pessoa é, é conhecer a sua alma, penetrar nos seus pensamentos”.

Por outro lado, Raul tinha tempo para pensar porque era um privilegiado, “Rico, não fizera da sua arte um ramo de comércio”. Como diz a voz do povo, “Só os ricos têm tempo para depressões”. Condenava a felicidade porque encarava-a como o contrário de inconstância, de questionamento constante, sinónimo de conformismo. Contudo essa serenidade de espírito que é a felicidade pode-se dever à perseguição de objectivos, de metas, querer que as coisas mudem, querer mudar o mundo, atingir alguns desses objectivos. Ser uma consequência da obtenção de alguns resultados, dando uma sensação de plenitude e serenidade. Quem tudo critica mas nada faz para mudar o incorrecto é natural que se torne obsessivo, depressivo e egoísta, “Se eu me queria suicidar com ele nessa noite, morrer feliz nos seus braços”. Entra em circuitos fechados, apesar de condenar as normas sociais, Salon de 1904. É muito versátil nos seus ideais. Nega tudo. Teatro, “Passar umas poucas horas a ouvir as baboseiras de uns figurões de cara pintada que nos pretendem impingir como pedaços de vida real, excede as minhas forças”, literatura, amor. Torna-se escultor, vai ao teatro “Raul como toda a gente (…) abraçou-me nos intervalos, falou com os seus conhecidos.”, Apaixona-se e leva o Amor à obsessão. Lê uns versos de Cesário Verde. O suícidio era moda na sua época entre intelectuais, quis saber pormenores do suícidio de Patrício Cruz, “ Descobrira-se com efeito – nunca se apurou como – que a sua operação não passara duma comédia”. Inevitavelmente burguês, “tomou-se o chá e as torradas”. Para Raul Vilar a velhice era a podridão “Amanhã… Terrível! Seremos velhos… A carne amolecida já não desejará a carne”. Contudo, defende que Amar é amar uma alma e Ser é alma e pensamentos, “ Ninguém te quererá… mas eu quero-te”. Realmente a velhice é o prenúncio de o fim de uma vida mas também a época áurea do conhecimento, o testemunho de um percurso de saber incansável. E quando morrermos o que fica é o que transmitimos aos outros e uma parcela daquilo com que contribuímos para mudar a sociedade. Daí discordar da afirmação, “Eu vivo. Nunca fiz vida. Fui mais sensato, gozei apenas…”.

Em suma, “Loucura? Mas afinal o que vem a ser a loucura?... Um enigma… Por isso mesmo é que às pessoas enigmáticas, incompreensíveis, se dá o nome de loucos.”. E a personagem, Raul vilar, “Será apenas um original que se deseja salientar, que faz gala nas suas originalidades, ou será um louco?”. Será de “um egoísmo atroz” porque “os doidos são irresponsáveis”?


Bárbara Veiga

Escuta, Zé Ninguém, Wilhelm Reich | 02/2006

Quando comecei a ler este livro, a primeira ideia que me transmitiu foi uma grande revolta do autor para com o mundo. Fazia-me lembrar os textos que escrevia há uns anos. Com muitas reticências, pontos de exclamação e interrogações que denotavam uma grande inquietação. Escrevia textos muito longos e as ideias repetiam-se, sem regras lógicas de organização. Eram assuntos escritos “a quente”, no auge da revolta interior. Na contracapa vinha a informação de que o livro “foi o resultado dos tumultos e conflitos íntimos de um cientista e pensador profundamente inconformista” mas inconformista somos todos quando escrevemos e é por isso que o fazemos. Sabia, de antemão, que tinha trabalhado com Freud, que tinha sido preso e que morrera por lá, que passara pela época do fascismo, que vivera o período das duas Grandes Guerras. As coisas pareciam ter o seu sentido, a revolta parecia ter uma consistência. Mas mesmo assim não conseguia perceber o sentido de todas aquelas palavras e gritos de revolta sobre a forma de caracteres em caixa alta e exclamações.

Só depois de conhecer a biografia de Wilhelm Reich toda a obra de repente começou a ser totalmente clara. Admirei-a quando no início a parecia detestar. Logo que a comecei a ler percebi que tinha uma grande lacuna nos meus conhecimentos sobre o fascismo. O que sei é muito geral, o que aprendi na escola, o que fui ouvindo aqui e ali, a que me transmitiu um sentimento de grande de frustração e impotência. É obvio que não se pode aprender tudo de uma vez mas há coisas que deveriam ser do conhecimento de todos. Então fui á procura.

Wilhelm Reich viveu no período entre 1897 e 1957. Era filho de pais camponeses. Estudou medicina, concluiu o curso em 1922, que é quando começa a trabalhar com Freud, na Sociedade Vienense de Psicanálise, de onde mais tarde é expulso. Faz vários estudos entre eles “A função do Orgasmo” em 1923, ainda a trabalhar com Freud, e “Análise do carácter”, 1928. Em 1927, ingressa no PC austríaco de onde é também expulso por fazer sombra às linhas estalinistas com a criação da “Associação para uma Política Sexual Proletária”. Na URSS dá apoio a crianças com a pedagoga Vera Schimdt. Tenta combater o mecanicismo determinista do Marxismo básico. Faz um estudo onde critica a obra de Malinowski (Malinovski via a família como uma instituição, vista como a base para desenvolver as necessidades de cultura. A alimentação, abrigo e reprodução seriam as primeiras respostas culturais que originariam novas necessidades culturais, complexificando o esquema cultural do individuo.), intitulado “A irrupção da Moral Sexual Repressiva”. E outro que tratava do fenómeno das massas como uma manipulação dos fantasmas sexuais dos alemães, entre eles Hitler (Cujo ódio era decerto derivado da infância, já que afirma em 1930, “Vocês não sabem de onde e de que família eu venho”. Envergonhava-se das suas origens humildes e cristãs. Era filho ilegítimo de um funcionário da alfandega, primo em segundo grau da sua mãe.). Em 1939, funda o Orgone Institut, que tem como princípio o Orgone Cósmico, o cosmos da energia vital que poderia resolver uma série de doenças, entre elas o cancro. Ele refere esta expressão Orgone, várias vezes ao longo do livro. O que me leva a concluir que a grande raiva dele provém essencialmente de não lhe darem credibilidade e não deixarem decorrer as suas pesquisas sem interferências de outrem. Para Reich, todas as doenças tinham origem naquilo a que ele chamava modju, a peste emocional, criada por uma deficiente vida sexual. Diz ele na sua obra, “Escuta, Zé Ninguém!”, “ Eram estes ratos que eu utilizava para tentar entender o processo de putrefacção que é o teu cancro.”, relativamente a terem proibido as suas pesquisas com ratos. Para ele, toda a Humanidade está doente por insistir na violência, no poder, na morte. Em 1957 é preso, os seus livros são proibidos e laboratórios destruídos. Acaba por morrer na prisão.

Antes, em 1945, escreve “Escuta, Zé Ninguém!”, obra onde reformula os seus conceitos revolucionários, afirmando que amor, trabalho e sabedoria são as fontes da nossa vida e que, por isso, deveriam também governá-la. Ele diz ao homem comum, para quem a segurança é mais importante que a verdade, que ama os seus generais mas não se ama a si próprio, “ÉS TU O TEU PRÓPRIO NEGREIRO. A verdade diz que mais ninguém senão tu é culpado da tua escravatura.”. E, dirigindo-se Ao Zé Ninguém, preconceituoso, que limita a liberdade sexual, lança a ameaça “Mas daqui a uns quinhentos, a uns mil anos, quando rapazes e raparigas saudáveis poderem enfim proteger o amor e nele achar alegria, nada mais restará de ti do que a memória do teu ridículo”, porque nem tudo está perdido.

Portanto, em suma, Zé Ninguém ou homem comum é todo o individuo seguidista, que só aclama os “grandes homens” (Reich distingue os grandes homens do Zé Ninguém, “ O grande homem é pois, aquele que reconhece quando e onde é pequeno. O homem pequeno é aquele que não reconhece a sua pequenez e teme reconhecê-la.”), não “medíocres” como ele Zé Ninguém, os homens que seguem a verdade, que só lhe dá «vivas» “ quando muitos outros Zés Ninguéns te dizem que esses grandes homens são grandes”. O homem comum é todo aquele que segue “um grande ideal de liberdade e motivos revolucionários” mas que é “escravo fiel de um único senhor”, seja ele comunista, “pai de todos os proletários”, “Eles assumem os grandes cargos (…) e tu ficas onde estavas: no lameiro”, Lenine, Estaline; ou fascista, batendo-se por ideais como «Deus, Pátria e Família», “ destróis na crença em que o fazes em nome do socialismo, ou do “Estado”, ou da “honra nacional”, ou da “glória de Deus”, Hitler, Mussolini, Franco; matando em nome da “Lei e da Ordem” mas sem saber o que é um Judeu, “ «A culpa é dos Judeus» (o anti-semitismo divulgava que os judeus eram a causa dos problemas económicos alemães) «O que é um Judeu?» (…) As análises de sangue não mostram qualquer diferença, não se distingue de um francês ou de um italiano (…) «Em que é diferente?» «Não sei.». Pois é, nós somos educados desde novos pela sociedade a diferenciar grupos sociais. Contaram-me os meus pais que, era eu muito pequena, estávamos no café Estrela e eu perguntei “ Porque é que aqueles senhores pretos estão numa mesa todos juntos e os brancos estão nas outras?”. Ninguém nos diz nada mas é algo que nos é transmitido desde o início da nossa aprendizagem. A sociedade é também o nosso modelo de desenvolvimento intelectual, tal como os nossos pais.

No início da obra, começa por dizer que teme o Zé Ninguém porque tem o mundo nas mãos (fala aqui do povo), “Há algumas décadas, tu, Zé Ninguém, começaste a penetrar o governo da terra. O futuro da raça humana depende, a partir de agora, da maneira como pensas e ages” “Porque és «o povo», a «opinião pública» e a consciência social»”. Teme por causa “da precariedade das tuas convicções”. Reich lança ao homem comum uma série de insultos “tens prisão de ventre mental”, “Não entendes nada”, “tens medo de ti”, “E permanecerás o mesmo Zé Ninguém cheio de espírito crítico, berrando «viva» a este e àquele”. Mas diz que tem esperança nele e não o odeia e, por conseguinte arranja-lhe soluções (uma coisa que os políticos portugueses nem sequer têm tempo de pensar, de tão preocupados a enumerar os problemas que estão), diz-lhe “Troca as tuas ilusões por um pouco de verdade. Manda os teus políticos e diplomatas a dar uma volta. Esquece o teu vizinho e escuta a tua própria voz”, “Diz (…) que desejas trabalhar em nome da vida, não ao serviço da morte”, “cria as leis que protegem a lei humana e os seus bens”, que são as crianças, o amor, o companheirismo, a cultura, a natureza; “PENSA CORRECTAMENTE”, “SÊ TU PRÒPRIO”.

E quem é explicitamente, na realidade, esse Zé Ninguém que tanto o incomoda? Esse homem comum é exactamente a representação de todos os indivíduos que lhe causam incómodo, raiva. São o “juiz da província” que o injuria de fascista, os outros psiquiatras que sofrem de “irresponsabilidade terapêutica” e o caluniam, intitulando-o “o profeta do orgasmo”, as Marias Ninguéns que “Pariste presidentes e infectaste-os com a tua vileza”, que o ameaçam mexendo “uns cordelhinhos” ao genro que é vice-presidente da câmara para o tramar (Ainda agora as coisas funcionam assim. Será que um dia irão mudar? Talvez se houver uma revolução «bem grande» de mentalidades…). É o editor “Em 1944 foi reeditado e aclamaste-o”. Aos que foram à organização de W.R., destinada à compreensão da sexualidade humana à espera de encontrarem “uma nova forma de bordel”. Á educadora frustrada que” esmagas com o teu ódio a afectividade das crianças”, ao médico que afirma que o “Psíquico é apenas a secreção das glândulas endócrinas” pois “Descobriste então que se pode ganhar muito dinheiro com as perturbações da mente humana”, ao presidente de uma sociedade cientifica, “perverso sexual” pois lançou os boatos de que Reich seduzia adolescentes e que incitava os filhos a presenciarem o acto sexual, ao lenhador “Devia amarrá-lo para se fazer bravo. O cão é manso demais”, a um individuo de um bar que procurava afirmar a sua “heróica masculinidade” dizendo, relativamente aos japoneses, “Estrangulá-los a todos”, à “secretariazinha”, “criaturinha medíocre”, que confundiu Sociedade Internacional de Plasmogenia, com “de Poligamia”, o Comissário de Saúde Pública “proíbem as minhas experiências com ratos” pois “Não passas de um peido”, o funcionário público “denunciaste-me como espião alemão”.

O problema de todos estes indivíduos é que quando lhes dão liberdade, abusam dela, fazem chacota, porque são reprimidos pela sociedade. Mas os seus pensamentos são obscenos, “És forçado a esconder a obscenidade em ti próprio”, e interpretam tudo mal “Você apontou-nos a via para a liberdade sexual; Foi-nos capaz de dizer F… o mais que puderem.”.

Este livro, “Escuta, Zé Ninguém!”, foi editado em Portugal só depois do 25 de Abril, em 1974, traduzido pela escritora portuguesa, Maria Velho da Costa, cuja obra está ligada à temática da condição feminina e à análise psicológica. Em 1972, foi uma das “três marias”, entre elas, também, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta, a ir julgamento pelo livro “Novas Cartas à Portuguesa”.

Houve uma frase que reti deste livro como a mais importante e que, para mim, é a roldana de toda esta máquina que é o mundo em funcionamento, “Que seja o trabalho a governar o mundo, não as opiniões sobre trabalho”. Isto é tão lógico. Há momentos em que me sento em frente à televisão. E há um ou outro político que gosto de ouvir falar pela convicção com que profere as palavras, e são tão bonitas para serem ouvidas, parece que vem dali a salvação. Identifico-me com aquilo que ouço. A verdade é que as palavras me alimentam o espírito mas não enchem o estômago a ninguém. E é nisto que andamos sempre, em conversações. Eles conversam, viajam, vão aos melhores médicos por ninharias, uma ruga aqui outra acolá. Tudo sem gastar um tostão. Pessoas superficiais que se confundem com o “Jet 7” português. Os funcionários públicos têm que fazer um esforço, os professores devem sentir-se lisonjeados por esse esforço, com que estão a contribuir para estar mais horas na escola a apoiar os alunos, diz a senhora ministra da educação. Toda a gente tem que “apertar o cinto”. E ela que esforço faz? E todos eles, quer sejam socialistas ou sociais-democratas, que os princípios vão todos dar ao mesmo (encher a pança dos políticos), quer sejam populares, bloquistas ou comunas? Eles os deputados, os ministros, o presidente…?

Gostei do livro. Concordo que o mundo gire a preto e branco por falta de afectos e é sempre estimulante ouvir alguém a gritar com o mundo.

Bárbara Veiga

Amadeus, Milos Forman | 02/2006

O livro a “Loucura” de Mário Sá Carneiro deixou em aberto algumas questões na minha cabeça. O questionamento é próprio do ser humano enquanto ser bio-cultural. Esqueçamos o “sócio” que tanto nos impede de pensar. A partir desse livro e de certas situações voltei a repensar o que era para mim um “génio” e um “louco”. As perguntas continuam em aberto mas julgo que o “génio”pode ser uma categoria de “loucura”. Contudo, “génio” e “louco” não são entendidos de forma pejorativa mas reconhecidos com carinho e entusiasmo, reconhecendo a sua singularidade e “Q”ualidades.

Fiquei completamente extasiada a ver este filme. Há coisas, pessoas, situações, que despertam em mim um enorme desejo de viver de querer saber mais e tudo, de pensar, de escrever. Pessoas que me lembram todos os dias, seja quem elas forem, que o mundo não é só composto por “medíocres” (uma palavra também muito utilizada no filme por António Salieri, referindo-se a si próprio), hipócritas e “chupistas”. Este filme foi um exemplo disso. A personagem Mozart, um “génio” real, que foi mesmo capaz de existir, entre outras personagens “comuns” que observo na actualidade, na vida real de todos os dias, como espectadora, vendo transgredir as normas sociais, criticar, observar a sociedade de forma ruidosa, interventiva, são os meus “loucos” e os meus “génios”. Não digo nada mas, no meu intimo sinto essas mesmas ideias (sim porque as “ideias” sentem-se, levam-nos ao “agir”) e em silêncio admiro e crio os meus modelos cognitivos do que observo, e ajo, e critico também, mas tentando não ser notada. Não falo na maior parte das vezes, guardo essas mesmas ideias mas para mim e rio com elas. Rio com a alma e alimento-me desse sorriso com uma força que me incita a ir mais longe e a fazer coisas mas em sereno porque sempre me disseram que “não devemos dizer tudo o que pensamos” e eu não o digo (por isso admiro todos aqueles que o podem dizer) e que “devemos ser iguais a toda a gente para não sermos excluídos” e, portanto, por vezes, sinto-me um pouco dividida entre o que gostaria de ser assumidamente e o que devo ser, o que a sociedade espera de mim. É assim a vida do mortal comum, a vida daqueles que “não foram iluminados por Deus” (como pensava Salieri acerca de Mozart, da sua “genialidade”).

Pois bem, eu senti toda vontade de Mozart em criar, o ardor, o delírio com que criava cada obra sua e a estima que tinha por cada uma em individual, o desejo de criar uma cada vez melhor que a anterior, capaz de fazer prostrar o mundo a seus pés, num delírio soberbo que desafiava a própria vida e ideia de tempo. A vontade de criar com o corpo inteiro, de criar com todos os sentidos, parecia que todo ele falava nas suas obras. Ele tinha uma limitação. O que o limitava era o tempo, mais uma vez um sinal imposto pela sociedade, mas não tinha só esse significado. Mozart queria ver tudo o que lhe vinha na alma, as suas emoções, expresso nas suas obras, e queria vê-los em prática o mais rapidamente possível, para só então pensar uma coisa ainda mais excepcional do que a anterior. Mas Mozart conseguiu mais e de forma mais intensa na sua curta vida de 35 anos do que Salieri na sua longa vida toda, o que se tornou na grande frustração deste último.

O riso de Mozart neste filme, o “cacarejo obsceno” (como o caracterizou António Salieri), é o símbolo que caracteriza a personagem central em todo o filme. Mozart ria e gozava toda aquela sociedade “medíocre”, todos aqueles nobres corruptos e ao mesmo tempo “beatos”, rudes e grosseiros, que não percebiam nada de música ou demasiado conservadores para abrir a mente a coisas novas. Mas tal gozo saia-lhe sempre caro porque andava sempre a contar cada tostão e cheio de dívidas. Era uma pessoa inconveniente e que seduzia todas as mulheres que se cruzavam no seu caminho, de forma que não tinha alunas que lhe dessem o sustento para viver.

Outra coisa que me seduziu no filme, como não poderia deixar de ser, foi a dualidade entre a música e a imagem, o ritmo a harmonia, um produto real sobre um fundo de reconstituição histórica do real, uma dualidade quase perfeita, una. Isso cria uma tensão, uma emoção muito intensa. Principalmente na parte do fim, numa passagem em que a imagem de uma carruagem se intercala com a criação do Requiem, última obra do autor que não chegou a ser completada pelo mesmo. Ele, já moribundo, tenta acabar a sua obra-prima, a carruagem sugere-nos que o fim está próximo e a música acompanha-a ao compasso da vida.


Bárbara Veiga

A Cadeira da Verdade, Ramada curto | 11/2005


Esta obra é, uma vez mais, uma crítica à sociedade portuguesa, e neste caso específico, à alta burguesia. Tal como Ramada Curto a intitula, “uma comédia de costumes, – de maus costumes”. Tal como o autor afirma, “ Os preceitos salutares que disciplinavam a ferocidade instintiva da besta humana (…) hoje a maior parte das pessoas não acredita nelas senão a fingir”. É bem verdade. “A crença religiosa, a moral, a disciplina, o receio da opinião, as noções de pudor” tornaram-se casacos de peles que se vestem no convívio com os outros, assim como um “trapo” ou o “rouge” que estereotipa expressões e dissimula estados de alma. O melhor exemplo do vestir uma personalidade construída para apresentar em público é a personagem Candinha, “Volto a ser menina… Que maçada! Não tenho paciência… Safo-me para o jardim para acalmar… Vou colhêr flores que é poético e próprio de uma menina.”. Ramada Curta pretende denunciar a sociedade tal como ela é porque segundo diz “ que assuntos pode em Portugal escolher quem gosta de escrever?”. Coloca também uma questão interessante que me tento também em transcrever “ Os «pequenos» são muito mais que os outros. E as coisas verdadeiramente belas, ou grandes, ou simplesmente interessantes, toda a gente, grandes e pequenos, as entendem”.

O problema fulcral da obra é questionar-nos até que ponto a verdade será conveniente às relações sociais. Mas por outro lado, o que nos pretende mostrar é que somos todos hipócritas, uns por mesquinhice, Candinha, Maria José, Júlia, Sequeira, D. Fernando, outros por receio de mostrar ideias diferentes das estipuladas pela sociedade, Padre Sá. Ao longo da história, o que vai adquirindo maior destaque é o denuncio do carácter de cada uma das personagens que culmina com a queda do pano de cada uma delas. D. Joana, uma mulher apaixonada, enganada, que põe o segundo marido mais novo num pedestal e que vive em função deste, “Faz tudo para que eu acredite… Se tu soubesses o que tu és para mim e como era a verdade que eu pressinto, que adivinho. Júlia e Maria José representam uma amizade por conveniência mas não se suportam e invejam-se mutuamente, “Até dá gosto ver, de amigas que são, não dá?”. Candinha, uma debutante que se mascara de inocente e infantil, por conveniência, “(Sarcástica) Ai, que apetite de criança”. Carlotinha, personagem incómoda à sociedade. Diz tudo o que pensa, denuncia com ironia o carácter das personagens. Contudo, as verdades incomodam e não gosta de as ouvir se estão relacionadas consigo mesma, “Carlotinha é uma velha azeda, maledicente, que cultiva a antipatia só para incomodar o semelhante”. Sequeira e D. Fernando são dois homens hipócritas que fingem amar D. Joana e Candinha, respectivamente, por causa do seu dinheiro. Eduardo e Aníbal são os personagens que procuram a verdade. O primeiro com receio e o segundo com a certeza de que a mentira é que convém aos homens. Eduardo é educado, considerado um génio. Diz Aníbal, relativamente ao amigo, “ Se tu não fosses rico podias vir a fazer grandes coisas”. Pois é. A conveniência e o bem-estar social leva-nos à “política dos favorecimentos”, que é contrária às “grandes coisas” que não convêm à sociedade. O Padre Sá, “é boa pessoa”, um homem que teme a sua voz interior por ser contrária ao regime instituído.


No fundo, tudo é uma farsa e as personagens vivem casamentos farsantes e as relações entre todos é a farsa maior. Mas no fim, a hipótese formulada no inicio da experiência confirma-se, “A verdade é um explosivo. No dia em que se introduzisse entre os homens, a Verdade Absoluta, o mundo fazia-se em cacos, a sociedade rebentava.”. A verdade é essa. Nós precisamos da mentira para nos relacionarmos uns com os outros porque senão nunca nos conseguiríamos tolerar.


Bárbara Veiga

A Biblioteca, Humberto Eco | 12/2005

Este livro é uma crítica às bibliotecas, que partiu de uma conferência dada no dia 10 de Março de 1981, data de comemoração dos vinte cinco anos de actividade da Biblioteca Municipal de Milão. O livro fala das condições que uma biblioteca devia ter para convidar o leitor, já que «A principal função da biblioteca, (…) é de descobrir livros de cuja existência não se suspeitava e que, todavia, se revelam extremamente importante para nós.». Mas para tal «é preciso decidir se queremos proteger os livros ou dá-los a ler» e «Se o ideal é fazer com que o livro seja lido, há que tentar protegê-lo o mais possível». Com ironia, Eco estabelece várias alíneas de um modelo negativo de uma biblioteca. Portanto, «os catálogos devem estar divididos ao máximo», «os temas devem ser decididos pelo bibliotecário», «As cotas devem ser intranscrítiveis e de preferência em grande quantidade», «O espaço de tempo decorrido entre o pedido e a entrega do livro deve ser muito longo», «Não se deve dar mais um livro de cada vez», «A Biblioteca deve desencorajar a leitura cruzada de vários livros porque provoca estrabismo», «Deve existir, de preferência uma ausência de fotocopiadoras», «O bibliotecário deve considerar o leitor como um inimigo, um vadio (senão estaria a trabalhar), um ladrão potencial», «Quase todo o pessoal deve ser afectado por limitações de ordem física», «O departamento consultivo deve ser inatingível», «O empréstimo de livros deve ser impossível e, em todo o caso, levar meses (…) o melhor no entanto, é garantir a impossibilidade de conhecer aquilo que há nas outras bibliotecas», «Os furtos devem ser facílimos», «Os horários devem coincidir absolutamente com os horários de trabalho (…) o maior inimigo da biblioteca é o estudante-trabalhador», «Não devem ser possível restaurar as forças dentro da biblioteca», «Não deve ser possível voltar a encontrar o livro no dia seguinte», «Não deve ser possível saber quem levou emprestado o livro que falta», «De preferência, nada de sanitários». Por último, «O ideal seria que o utente não pudesse entrar na biblioteca; não deve ter acesso aos penetrais das estantes (contrariando, o princípio da Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão, que não foi ainda assimilado pela sensibilidade colectiva)».


Eco afirma ter-se inspirado em bibliotecas reais para elaborar estas alíneas, contudo nem todas as bibliotecas têm má funcionamento. Dentro das que conhece, enuncia como exemplos positivos a Sterling Lybrary de Yale e a biblioteca da Universidade de Toronto. A Sterling Library é um mosteiro neogótico, mal iluminada, labiríntica, «o controlo à é feito à saída por um funcionário» que olha de forma rápida e distraída para uma pasta. Contudo, é um espaço onde «têm acesso estudantes e investigadores» a todos os documentos, tem «uma secção que troca as notas», um índice do «que se encontra nas outras bibliotecas da zona», «O bar, o espaço com as maquinetas que também aquecem salsichas», tornando-se convidativa à investigação. A biblioteca da Universidade de Toronto encontra-se num edifício de arquitectura contemporânea, «tudo iluminadíssimo», «salas com óptimos maples onde se senta a ler», consegue-se um cartão de circulação nos corredores de investigação mesmo telefonicamente, «há a magnetização total das lombadas dos livros», «em vez de salas de leitura existem boxes (…) onde guarda os seus livros e para onde vai trabalhar quando quer». Ambas as bibliotecas estão abertas até à meia-noite e ao domingo. Os inconvenientes são os roubos, os estragos e a «xerocivilização [que] implica desde logo a derrocada do conceito de direitos de autor». Se «fotocopiarmos o livro sozinhos ninguém nos diz nada». «Assim, e, através da xerocivilização, aproximamo-nos cada vez mais de um futuro em que os editores passarão a publicar exclusivamente para as bibliotecas, o que constitui um facto a considerar». «Mas o pior há de acontecer quando a civilização dos visores e das microfichas suplantar totalmente a do livro consultável».


Em suma, uma Biblioteca deverá ter como principal objectivo ser um espaço convidativo à permanência, à consulta, à leitura e à pesquisa no local. Deve ter equipamento e funcionários que tornem o seu funcionamento prático, funcional, ser capaz de resposta imediata e ter as condições necessárias para que se possa passar mais tempo no local, desde bar/snack, WC, fotocopiadoras disponíveis e equipamento de escritório. Deverá ser, portanto, possível transportar de uma zona para outra os documentos com que se está a trabalhar. Ter acesso à Internet sempre disponível. È agora indiscutível que esteja equipado com rede wireless. Deve ser uma zona iluminada, a “cheirar” a modernidade. Deverá estar aberta até tarde e todos os dias para que um individuo possa esclarecer as suas dúvidas e satisfazer o seu conhecimento no seu tempo livre. Diz Humberto Eco, que é necessário que a Biblioteca «se vá transformando gradualmente numa grande máquina de tempos livres, como é o Museum of Modern Art, onde se vai ao cinema, se passeia no jardim, se vêem as esculturas e se toma uma refeição completa.». «Ou seja, se a biblioteca é, como pretende Borges, um modelo do Universo, tentemos transformá-la num Universo à medida do Homem».


Transportando estes critérios de um modelo bom e mau de biblioteca para o meu universo. Vejo como mau, sem sombra de dúvidas, a Biblioteca Municipal de S.Lázaro, onde os funcionários, muitos deles a cheirar tanto a mofo como a biblioteca parecem que nos fazem um enormíssimo favor sempre que perguntamos alguma coisa, mas sempre distantes, altivos e desconfiados, como se fossemos roubar ou estragar alguma coisa. Nunca me consegui sentir bem naquele espaço atarracado a transpirar azedume, onde grande parte da documentação se encontra escondida e onde sempre negam o acesso ao Comum Mortal. Nesta Biblioteca, apesar de tudo, tenho que gabar a secção infantil que contraria em tudo as demais secções. Como modelo de uma boa biblioteca tenho a Biblioteca Almeida Garrett que me convida sistematicamente à sua visita. Quer seja pela sua construção envidraçada que convida o jardim a entrar biblioteca dentro, onde a luz ilumina o espaço já iluminado por si só. Tenho a gabar o equipamento, as iniciativas culturais, a variedade de suportes de informação e diversidade de assuntos. Tenho a criticar o encerramento ao domingo e a hora do fecho, que é às 17h30. Há também a carência de livros de design, seja ele de equipamento, gráfico, de moda ou de qualquer outro tipo. Mas essa carência, estupidamente, também acontece na biblioteca do Museu de Serralves, onde os dois livros que existem de design gráfico estão guardados por falta de procura.




Bárbara Veiga