quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Amadeus, Milos Forman | 02/2006

O livro a “Loucura” de Mário Sá Carneiro deixou em aberto algumas questões na minha cabeça. O questionamento é próprio do ser humano enquanto ser bio-cultural. Esqueçamos o “sócio” que tanto nos impede de pensar. A partir desse livro e de certas situações voltei a repensar o que era para mim um “génio” e um “louco”. As perguntas continuam em aberto mas julgo que o “génio”pode ser uma categoria de “loucura”. Contudo, “génio” e “louco” não são entendidos de forma pejorativa mas reconhecidos com carinho e entusiasmo, reconhecendo a sua singularidade e “Q”ualidades.

Fiquei completamente extasiada a ver este filme. Há coisas, pessoas, situações, que despertam em mim um enorme desejo de viver de querer saber mais e tudo, de pensar, de escrever. Pessoas que me lembram todos os dias, seja quem elas forem, que o mundo não é só composto por “medíocres” (uma palavra também muito utilizada no filme por António Salieri, referindo-se a si próprio), hipócritas e “chupistas”. Este filme foi um exemplo disso. A personagem Mozart, um “génio” real, que foi mesmo capaz de existir, entre outras personagens “comuns” que observo na actualidade, na vida real de todos os dias, como espectadora, vendo transgredir as normas sociais, criticar, observar a sociedade de forma ruidosa, interventiva, são os meus “loucos” e os meus “génios”. Não digo nada mas, no meu intimo sinto essas mesmas ideias (sim porque as “ideias” sentem-se, levam-nos ao “agir”) e em silêncio admiro e crio os meus modelos cognitivos do que observo, e ajo, e critico também, mas tentando não ser notada. Não falo na maior parte das vezes, guardo essas mesmas ideias mas para mim e rio com elas. Rio com a alma e alimento-me desse sorriso com uma força que me incita a ir mais longe e a fazer coisas mas em sereno porque sempre me disseram que “não devemos dizer tudo o que pensamos” e eu não o digo (por isso admiro todos aqueles que o podem dizer) e que “devemos ser iguais a toda a gente para não sermos excluídos” e, portanto, por vezes, sinto-me um pouco dividida entre o que gostaria de ser assumidamente e o que devo ser, o que a sociedade espera de mim. É assim a vida do mortal comum, a vida daqueles que “não foram iluminados por Deus” (como pensava Salieri acerca de Mozart, da sua “genialidade”).

Pois bem, eu senti toda vontade de Mozart em criar, o ardor, o delírio com que criava cada obra sua e a estima que tinha por cada uma em individual, o desejo de criar uma cada vez melhor que a anterior, capaz de fazer prostrar o mundo a seus pés, num delírio soberbo que desafiava a própria vida e ideia de tempo. A vontade de criar com o corpo inteiro, de criar com todos os sentidos, parecia que todo ele falava nas suas obras. Ele tinha uma limitação. O que o limitava era o tempo, mais uma vez um sinal imposto pela sociedade, mas não tinha só esse significado. Mozart queria ver tudo o que lhe vinha na alma, as suas emoções, expresso nas suas obras, e queria vê-los em prática o mais rapidamente possível, para só então pensar uma coisa ainda mais excepcional do que a anterior. Mas Mozart conseguiu mais e de forma mais intensa na sua curta vida de 35 anos do que Salieri na sua longa vida toda, o que se tornou na grande frustração deste último.

O riso de Mozart neste filme, o “cacarejo obsceno” (como o caracterizou António Salieri), é o símbolo que caracteriza a personagem central em todo o filme. Mozart ria e gozava toda aquela sociedade “medíocre”, todos aqueles nobres corruptos e ao mesmo tempo “beatos”, rudes e grosseiros, que não percebiam nada de música ou demasiado conservadores para abrir a mente a coisas novas. Mas tal gozo saia-lhe sempre caro porque andava sempre a contar cada tostão e cheio de dívidas. Era uma pessoa inconveniente e que seduzia todas as mulheres que se cruzavam no seu caminho, de forma que não tinha alunas que lhe dessem o sustento para viver.

Outra coisa que me seduziu no filme, como não poderia deixar de ser, foi a dualidade entre a música e a imagem, o ritmo a harmonia, um produto real sobre um fundo de reconstituição histórica do real, uma dualidade quase perfeita, una. Isso cria uma tensão, uma emoção muito intensa. Principalmente na parte do fim, numa passagem em que a imagem de uma carruagem se intercala com a criação do Requiem, última obra do autor que não chegou a ser completada pelo mesmo. Ele, já moribundo, tenta acabar a sua obra-prima, a carruagem sugere-nos que o fim está próximo e a música acompanha-a ao compasso da vida.


Bárbara Veiga

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