quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Escuta, Zé Ninguém, Wilhelm Reich | 02/2006

Quando comecei a ler este livro, a primeira ideia que me transmitiu foi uma grande revolta do autor para com o mundo. Fazia-me lembrar os textos que escrevia há uns anos. Com muitas reticências, pontos de exclamação e interrogações que denotavam uma grande inquietação. Escrevia textos muito longos e as ideias repetiam-se, sem regras lógicas de organização. Eram assuntos escritos “a quente”, no auge da revolta interior. Na contracapa vinha a informação de que o livro “foi o resultado dos tumultos e conflitos íntimos de um cientista e pensador profundamente inconformista” mas inconformista somos todos quando escrevemos e é por isso que o fazemos. Sabia, de antemão, que tinha trabalhado com Freud, que tinha sido preso e que morrera por lá, que passara pela época do fascismo, que vivera o período das duas Grandes Guerras. As coisas pareciam ter o seu sentido, a revolta parecia ter uma consistência. Mas mesmo assim não conseguia perceber o sentido de todas aquelas palavras e gritos de revolta sobre a forma de caracteres em caixa alta e exclamações.

Só depois de conhecer a biografia de Wilhelm Reich toda a obra de repente começou a ser totalmente clara. Admirei-a quando no início a parecia detestar. Logo que a comecei a ler percebi que tinha uma grande lacuna nos meus conhecimentos sobre o fascismo. O que sei é muito geral, o que aprendi na escola, o que fui ouvindo aqui e ali, a que me transmitiu um sentimento de grande de frustração e impotência. É obvio que não se pode aprender tudo de uma vez mas há coisas que deveriam ser do conhecimento de todos. Então fui á procura.

Wilhelm Reich viveu no período entre 1897 e 1957. Era filho de pais camponeses. Estudou medicina, concluiu o curso em 1922, que é quando começa a trabalhar com Freud, na Sociedade Vienense de Psicanálise, de onde mais tarde é expulso. Faz vários estudos entre eles “A função do Orgasmo” em 1923, ainda a trabalhar com Freud, e “Análise do carácter”, 1928. Em 1927, ingressa no PC austríaco de onde é também expulso por fazer sombra às linhas estalinistas com a criação da “Associação para uma Política Sexual Proletária”. Na URSS dá apoio a crianças com a pedagoga Vera Schimdt. Tenta combater o mecanicismo determinista do Marxismo básico. Faz um estudo onde critica a obra de Malinowski (Malinovski via a família como uma instituição, vista como a base para desenvolver as necessidades de cultura. A alimentação, abrigo e reprodução seriam as primeiras respostas culturais que originariam novas necessidades culturais, complexificando o esquema cultural do individuo.), intitulado “A irrupção da Moral Sexual Repressiva”. E outro que tratava do fenómeno das massas como uma manipulação dos fantasmas sexuais dos alemães, entre eles Hitler (Cujo ódio era decerto derivado da infância, já que afirma em 1930, “Vocês não sabem de onde e de que família eu venho”. Envergonhava-se das suas origens humildes e cristãs. Era filho ilegítimo de um funcionário da alfandega, primo em segundo grau da sua mãe.). Em 1939, funda o Orgone Institut, que tem como princípio o Orgone Cósmico, o cosmos da energia vital que poderia resolver uma série de doenças, entre elas o cancro. Ele refere esta expressão Orgone, várias vezes ao longo do livro. O que me leva a concluir que a grande raiva dele provém essencialmente de não lhe darem credibilidade e não deixarem decorrer as suas pesquisas sem interferências de outrem. Para Reich, todas as doenças tinham origem naquilo a que ele chamava modju, a peste emocional, criada por uma deficiente vida sexual. Diz ele na sua obra, “Escuta, Zé Ninguém!”, “ Eram estes ratos que eu utilizava para tentar entender o processo de putrefacção que é o teu cancro.”, relativamente a terem proibido as suas pesquisas com ratos. Para ele, toda a Humanidade está doente por insistir na violência, no poder, na morte. Em 1957 é preso, os seus livros são proibidos e laboratórios destruídos. Acaba por morrer na prisão.

Antes, em 1945, escreve “Escuta, Zé Ninguém!”, obra onde reformula os seus conceitos revolucionários, afirmando que amor, trabalho e sabedoria são as fontes da nossa vida e que, por isso, deveriam também governá-la. Ele diz ao homem comum, para quem a segurança é mais importante que a verdade, que ama os seus generais mas não se ama a si próprio, “ÉS TU O TEU PRÓPRIO NEGREIRO. A verdade diz que mais ninguém senão tu é culpado da tua escravatura.”. E, dirigindo-se Ao Zé Ninguém, preconceituoso, que limita a liberdade sexual, lança a ameaça “Mas daqui a uns quinhentos, a uns mil anos, quando rapazes e raparigas saudáveis poderem enfim proteger o amor e nele achar alegria, nada mais restará de ti do que a memória do teu ridículo”, porque nem tudo está perdido.

Portanto, em suma, Zé Ninguém ou homem comum é todo o individuo seguidista, que só aclama os “grandes homens” (Reich distingue os grandes homens do Zé Ninguém, “ O grande homem é pois, aquele que reconhece quando e onde é pequeno. O homem pequeno é aquele que não reconhece a sua pequenez e teme reconhecê-la.”), não “medíocres” como ele Zé Ninguém, os homens que seguem a verdade, que só lhe dá «vivas» “ quando muitos outros Zés Ninguéns te dizem que esses grandes homens são grandes”. O homem comum é todo aquele que segue “um grande ideal de liberdade e motivos revolucionários” mas que é “escravo fiel de um único senhor”, seja ele comunista, “pai de todos os proletários”, “Eles assumem os grandes cargos (…) e tu ficas onde estavas: no lameiro”, Lenine, Estaline; ou fascista, batendo-se por ideais como «Deus, Pátria e Família», “ destróis na crença em que o fazes em nome do socialismo, ou do “Estado”, ou da “honra nacional”, ou da “glória de Deus”, Hitler, Mussolini, Franco; matando em nome da “Lei e da Ordem” mas sem saber o que é um Judeu, “ «A culpa é dos Judeus» (o anti-semitismo divulgava que os judeus eram a causa dos problemas económicos alemães) «O que é um Judeu?» (…) As análises de sangue não mostram qualquer diferença, não se distingue de um francês ou de um italiano (…) «Em que é diferente?» «Não sei.». Pois é, nós somos educados desde novos pela sociedade a diferenciar grupos sociais. Contaram-me os meus pais que, era eu muito pequena, estávamos no café Estrela e eu perguntei “ Porque é que aqueles senhores pretos estão numa mesa todos juntos e os brancos estão nas outras?”. Ninguém nos diz nada mas é algo que nos é transmitido desde o início da nossa aprendizagem. A sociedade é também o nosso modelo de desenvolvimento intelectual, tal como os nossos pais.

No início da obra, começa por dizer que teme o Zé Ninguém porque tem o mundo nas mãos (fala aqui do povo), “Há algumas décadas, tu, Zé Ninguém, começaste a penetrar o governo da terra. O futuro da raça humana depende, a partir de agora, da maneira como pensas e ages” “Porque és «o povo», a «opinião pública» e a consciência social»”. Teme por causa “da precariedade das tuas convicções”. Reich lança ao homem comum uma série de insultos “tens prisão de ventre mental”, “Não entendes nada”, “tens medo de ti”, “E permanecerás o mesmo Zé Ninguém cheio de espírito crítico, berrando «viva» a este e àquele”. Mas diz que tem esperança nele e não o odeia e, por conseguinte arranja-lhe soluções (uma coisa que os políticos portugueses nem sequer têm tempo de pensar, de tão preocupados a enumerar os problemas que estão), diz-lhe “Troca as tuas ilusões por um pouco de verdade. Manda os teus políticos e diplomatas a dar uma volta. Esquece o teu vizinho e escuta a tua própria voz”, “Diz (…) que desejas trabalhar em nome da vida, não ao serviço da morte”, “cria as leis que protegem a lei humana e os seus bens”, que são as crianças, o amor, o companheirismo, a cultura, a natureza; “PENSA CORRECTAMENTE”, “SÊ TU PRÒPRIO”.

E quem é explicitamente, na realidade, esse Zé Ninguém que tanto o incomoda? Esse homem comum é exactamente a representação de todos os indivíduos que lhe causam incómodo, raiva. São o “juiz da província” que o injuria de fascista, os outros psiquiatras que sofrem de “irresponsabilidade terapêutica” e o caluniam, intitulando-o “o profeta do orgasmo”, as Marias Ninguéns que “Pariste presidentes e infectaste-os com a tua vileza”, que o ameaçam mexendo “uns cordelhinhos” ao genro que é vice-presidente da câmara para o tramar (Ainda agora as coisas funcionam assim. Será que um dia irão mudar? Talvez se houver uma revolução «bem grande» de mentalidades…). É o editor “Em 1944 foi reeditado e aclamaste-o”. Aos que foram à organização de W.R., destinada à compreensão da sexualidade humana à espera de encontrarem “uma nova forma de bordel”. Á educadora frustrada que” esmagas com o teu ódio a afectividade das crianças”, ao médico que afirma que o “Psíquico é apenas a secreção das glândulas endócrinas” pois “Descobriste então que se pode ganhar muito dinheiro com as perturbações da mente humana”, ao presidente de uma sociedade cientifica, “perverso sexual” pois lançou os boatos de que Reich seduzia adolescentes e que incitava os filhos a presenciarem o acto sexual, ao lenhador “Devia amarrá-lo para se fazer bravo. O cão é manso demais”, a um individuo de um bar que procurava afirmar a sua “heróica masculinidade” dizendo, relativamente aos japoneses, “Estrangulá-los a todos”, à “secretariazinha”, “criaturinha medíocre”, que confundiu Sociedade Internacional de Plasmogenia, com “de Poligamia”, o Comissário de Saúde Pública “proíbem as minhas experiências com ratos” pois “Não passas de um peido”, o funcionário público “denunciaste-me como espião alemão”.

O problema de todos estes indivíduos é que quando lhes dão liberdade, abusam dela, fazem chacota, porque são reprimidos pela sociedade. Mas os seus pensamentos são obscenos, “És forçado a esconder a obscenidade em ti próprio”, e interpretam tudo mal “Você apontou-nos a via para a liberdade sexual; Foi-nos capaz de dizer F… o mais que puderem.”.

Este livro, “Escuta, Zé Ninguém!”, foi editado em Portugal só depois do 25 de Abril, em 1974, traduzido pela escritora portuguesa, Maria Velho da Costa, cuja obra está ligada à temática da condição feminina e à análise psicológica. Em 1972, foi uma das “três marias”, entre elas, também, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta, a ir julgamento pelo livro “Novas Cartas à Portuguesa”.

Houve uma frase que reti deste livro como a mais importante e que, para mim, é a roldana de toda esta máquina que é o mundo em funcionamento, “Que seja o trabalho a governar o mundo, não as opiniões sobre trabalho”. Isto é tão lógico. Há momentos em que me sento em frente à televisão. E há um ou outro político que gosto de ouvir falar pela convicção com que profere as palavras, e são tão bonitas para serem ouvidas, parece que vem dali a salvação. Identifico-me com aquilo que ouço. A verdade é que as palavras me alimentam o espírito mas não enchem o estômago a ninguém. E é nisto que andamos sempre, em conversações. Eles conversam, viajam, vão aos melhores médicos por ninharias, uma ruga aqui outra acolá. Tudo sem gastar um tostão. Pessoas superficiais que se confundem com o “Jet 7” português. Os funcionários públicos têm que fazer um esforço, os professores devem sentir-se lisonjeados por esse esforço, com que estão a contribuir para estar mais horas na escola a apoiar os alunos, diz a senhora ministra da educação. Toda a gente tem que “apertar o cinto”. E ela que esforço faz? E todos eles, quer sejam socialistas ou sociais-democratas, que os princípios vão todos dar ao mesmo (encher a pança dos políticos), quer sejam populares, bloquistas ou comunas? Eles os deputados, os ministros, o presidente…?

Gostei do livro. Concordo que o mundo gire a preto e branco por falta de afectos e é sempre estimulante ouvir alguém a gritar com o mundo.

Bárbara Veiga

3 comentários:

Ciênt's downs disse...

Gostei da sua visão, realmente o "Zé Ninguém" é uma apologia a nós mesmos como um todo.

Suzette Morais disse...

Li este livro quando tinha 19 ou 20 anos e marcou-me imenso. estou a le-lo agora outra vez, com 56 anos. A impressao que me causou continua intacta. Um livro imperdivel. Gostei de ler o que escreveu. Cumprimentos

Unknown disse...

Nunca li o livro.mas já ouvi falar bastante.gostaria de ter lido aos 20.mas agora aos 45 vou ler.nunca e tarde para sabedoria.